Olá. Aceitei escrever esta coluna por um motivo, digamos, curioso.Estava em Roma há pouco mais de dois meses, numa tabacaria chamada Charade Bar no pequeno Hotel De Ricci, na Piazza De Ricci, quando o homem entrou no ambiente. Calma, deixe-me ajudá-los a visualizar melhor a cena para que entendam a minha perplexidade: a sala tinha algo em torno de vinte metros quadrados, paredes verdes, duas poltronas e um sofá, ambos de couro marrom com botonés e uma mesa de centro sobre a qual repousava uma urna de madeira com os charutos cubanos. Um pequeno cofre, o custódio da felicidade fumígena. De quando em quando o jovem Leonardo, um italiano simpático, funcionário do Hotel, entrava para perguntar se tudo estava em ordem. A maior parte do tempo eu ficava sozinho naquela sala. Lia qualquer coisa, escrevia um par de anotações sobre o dia, enfim: minha rotina naquela semana de dez dias resumia-se a trabalhar na Pontificia Universittà das 09h as 16h, depois trabalhar mais um pouco com os alunos das 16h as 22h e escorregar-me sozinho para a tabacaria das 22h30 as 01h. Precisamente nestas horinhas finais da jornada (talvez do terceiro ou quarto dia) é que fui apresentado ao tal homem. Eu já havia chegado há cerca de uma ou duas horas, já havia lido vinte ou trinta páginas de György Lukács (Esboço de uma Estética Marxista era o Livro que me acompanhava naqueles dias) e já estava no final do primeiro charuto ou iniciando o segundo, quando percebi um movimento do lado de fora da sala. Coisa rara. Em todos aqueles dois ou três dias, não havia esbarrado por ali com ninguém além do Leonardo e do Flavio (dono do Hotel, também jovem). Bem, o movimento. O movimento consistia em nada além de um homem conversando com Leornardo e Flavio, o trio olhava para dentro da tabacaria, onde eu estava, e meneavam com a cabeça. Não soube identificar o que significavam aqueles espasmos em forma de torcicolo porque para além dos meneios, que no Brasil significariam contrariedade, havia em todos eles algo como um sorriso nos olhos. Deixe-me avançar. Poderia ficar aqui o dia todo descrevendo esta cena que ainda produz novidades na minha lembrança.«Bona sera».«Bona sera».«Cossa sito dré a fumar ades? Gh'è tre aromi che se missia en l'aria: el passado, el presente e 'l futuro».«Passado: Trinidad, presente: Montecristo... Futuro: te consìe la edizion speciai par l'Italia de l'H. Upmann».«Piacer, mi me ciame Tarvaa, e vù, come ve ciamè?»«Italo, el me ciama tuti così».«Leonardo, porta'm 'n H. Upmann». ** “Boa noite”. “Boa noite”. “o que você está fumando agora? Há três aromas misturados no ar: o passado o presente e o futuro”. “Passado: Trinindad, presente: MonteCrsito... Futuro: eu recomendo a Edição especial para a Italia do H Upman”. “Prazer, chamamo-me Tarvaa, e o senhor, como se chama?”. “Italo, é como têm me chamado”. “Leonardo, um H Upman para mim”.Este foi o diálogo inicial entre Tarvaa e eu, na tabacaria. Ele não era italiano. Falava em dialeto do Trentino-alto-adige com um um sotaque do oriente, mas não pude ver seus olhos (nem a forma nem a cor) pois estava com óculos escuros. Possuía ainda uma distinta bengala de ferro e pedra (acho que era pedra). Conversamos sobre muitas coisas. Certamente não viu o livro que eu tinha em mãos, pois era cego. Falamos sobre a guerra, sobre a Igreja, sobre as guerras religiosas, sobre o inferno, sobre o Oriente e sobre o Rio de Janeiro, sobre literatura chinesa. Tarvaa contou-me sobre a sua infância. (Não tenho nenhum interesse sobre a infância das pessoas). Tarvaa tinha algo entre 12 e 14 anos de idade quando caiu doente. Uma peste espalhou-se por toda a sua aldeia, na região do Khangai Nuruu. Naquele tempo (Tarvaa contou-me), os mais velhos acreditavam que as epidemias eram enviadas pelos espíritos vermelhos das montanhas, como vingança por alguma desobediência ou quebra dos costumes ancestrais. Seu povo ficou doente aos poucos, e os que ainda tinham forças logo partiram, deixando para trás os mais frágeis. Tarvaa foi deixado para trás.Enquanto seu corpo ardia em febre e sua alma pendia entre este mundo e o outro, Tarvaa encontrou-se diante do grande portão de ferro do Reino dos Mortos. Ele não desejava atravessá-lo, mas mesmo assim avançou. Lá dentro, entre sombras escuras e névoas que nunca se dissipam, estava sentado o Khan do Submundo, imponente e majestoso, envolto em uma luz de prata pálida.O Khan ergueu os olhos e, com voz poderosa que ecoava como um tambor em seu peito, perguntou:— O que faz aqui, criança? Ainda não chegou seu tempo.Tarvaa contou ao Khan tudo o que acontecera: a doença, o abandono, o medo e finalmente a solidão. O Khan pareceu comover-se com aquelas palavras tão sinceras, pois inclinou-se e disse-lhe:— Você veio cedo demais, Tarvaa. Posso te enviar de volta ao mundo dos vivos. Mas não posso permitir que saia daqui sem levar algo consigo. Escolha o que quiser, e o terá.O menino então observou tudo ao redor. Havia riquezas incalculáveis, tesouros empilhados como montanhas douradas. Havia belas dançarinas, músicos tocando instrumentos feitos de ossos e madeira negra, havia joias e comidas gordurosas, perfumes humanos que faziam a mente vagar pelo infinito.Após um longo silêncio, disse:— Quero as histórias, senhor. Quero ser capaz de contar as histórias que ninguém jamais ouviu. Quero transmitir o passado e inventar o futuro.O Khan levantou o braço direito e movimentou o tronco, pois era raro que alguém escolhesse com tanta sabedoria. Então, colocou a mão esquerda no peito de Tarvaa e disse-lhe sem mexer a boca:— Pois bem, leve contigo este dom.Quando acordou, já era noite. Seu corpo havia sido dado por morto, e corvos famintos arrancaram-lhe os olhos. Nunca mais voltaria a ver o mundo com a mesma clareza física. Mas o mundo em sua essência passou a ser visto com absoluta nitidez em sua alma. Voltou para a aldeia, recuperou-se, e dali em diante dedicou sua vida a viajar pelo vasto território mongol contando as histórias que recebera do Khan do Submundo.Tarvaa contou-me essa história em voz normal, sem sussurros ou coisas do tipo. De tempos em tempos comentávamos sobre o cheiro suave do H. Upmann que pairava entre nós. Eu sabia exatamente como reagir à narrativa fantástica que me oferecera; afinal, naquele instante tudo parecia possível, e talvez realmente fosse. No fim daquela noite, Tarvaa guardou silêncio por um instante (já estávamos cansados de falar em italiano) e retirou do bolso interno do seu blazer um pendrive. Estendeu-o em minha direção:— Está aqui parte de tudo o que recebi, foi-me dado pelo Khan. Nenhuma destas histórias importa, elas são tudo o que realmente possuo.Levantou-se alegremente, ajeitou os óculos escuros, tomou a distinta bengala de ferro e pedra, apertou minha mão com firmeza e carinho:— Adeus, Italo. Talvez nos vejamos novamente.Tarvaa saiu da tabacaria, deixando-me sozinho com aquele pequeno objeto em mãos. Não voltei a vê-lo desde então. O pendrive (e as histórias que ele contém) está guardado aqui na gaveta da minha escrivaninha. Pretendo abri-lo e compartilhar algumas dessas histórias com vocês nesta coluna.