São múltiplas as ameaças graves e os desafios imensos que colocam em causa O Nosso Futuro Comum (1). Normalmente, referem-se as alterações climáticas e as questões ambientais, para evidenciar esses riscos e ameaças. Contudo, na verdade, são muito mais numerosas e complexas, abarcando, pelo menos nove áreas – ambiental, social, económica, cultural, territorial, cognitiva, tecnológica, política e ética –, como exprime o conceito de Desenvolvimento Sustentável reformulado (2). Por isso, é fundamental juntar esforços e protagonistas para enfrentar essas ameaças e desafios. Mercado ou Estado – o dilema do século XX O século XX foi marcado por uma “ditadura” da dicotomia “Mercado – Estado” ou “privado – público”, “expulsando, com os argumentos do Capitalismo e do Socialismo Burocrático, a Comunidade, que tinha sido uma protagonista importante na regulação da sociedade e na promoção do Bem-Estar e do Bem Viver. E assim, o conceito de “privado” passou a significar “mercadoria” e o de “público” passou a ser sinónimo de “estatal”. O célebre artigo de Garrett Hardin, sobre «A Tragédia dos Comuns» ilustra bem a argumentação que defende a superioridade da gestão privada ou pública sobre uma governança comunitária (3). Mas a Comunidade e o tema dos “Comuns” está de volta desde os finais do século XX, tornando-se outro dos protagonistas para enfrentar os desafios do século XXI. A Comunidade de regresso ? Um dos pontos de viragem foram os estudos sobre a governança dos Comuns, que uma economista norte-americana, Elinor Ostrom (4), realizou e apresentou nos anos de 1990 e lhe granjearam a atribuição do Prémio Nobel da Economia, em 2009, o primeiro a ser atribuído a uma mulher nessa área. O tema dos chamados “Novos Comuns”, contribuiu decisivamente para o “regresso” da Comunidade ao protagonismo das sociedades actuais, atravessando múltiplos temas e desafios (desde as questões da floresta, da água, das sementes, da cultura, do conhecimento dos/as seniores, das migrações, da alimentação, da educação das crianças, até ao software, à produção de conhecimento, aos creative commons, às moedas sociais, ao espaço público, à democracia) (5). A Comunidade está de volta, desafiando o Mercado e o Estado, nomeadamente pelos caminhos do Desenvolvimento Comunitário, da Economia Solidária e da Democracia Participativa, assumindo frequentemente uma perspectiva pós-capitalista e de reforço e reformulação do Estado Social. Um dos exemplos mais emblemáticos é o do Conjunto Palmeiras e do Banco Palmas, em Fortaleza, no Ceará (Brasil) (6). Cooperação ou colaboração? Solidariedade ecocêntrica! O regresso da Comunidade reintroduz o tema da Cooperação e da Acção Colectiva nas sociedades actuais, como contraponto ao predomínio da competição e do individualismo, que caracterizam as lógicas dominantes no Mercado. Contudo, o tema da Cooperação parece já não estar na moda, substituído pelo da Colaboração, sendo o adjectivo “colaborativo” omnipresente nas conversas, nos discursos e nas candidaturas, até de quem se assume com as preocupações referidas nos pontos anteriores. E até há quem assegure que “colaboração” corresponde a um grau de acção conjunta mais avançado do que “cooperação” (7). Sem ter aqui a oportunidade e o tempo para contrapor, remeto para o que escrevi na nota de rodapé 3 e prefiro referir-me, para já, à palavra e ao conceito de Cooperação, até por respeito pela luta heróica dos operários do século XIX (nomeadamente os da Sociedade Equitativa dos Pioneiros de Rochdale, em 1844), na abertura dos caminhos da Economia Social e do Cooperativismo, como alternativa ao Capitalismo e à Economia de Mercado. Mas, no século XXI, permito-me sublinhar sobretudo a importância do conceito (e do valor) da Solidariedade Democrática (e não filantrópica), Emancipatória (e não assistencialista) e sobretudo Ecocêntrica (e não meramente antropocêntrica), proposta pela Economia Solidária e pelo regresso da Comunidade. Utopias em Acção Este é o título de um programa que venho realizando há cerca de sete anos na Rádio Movimento, uma rádio web de autor e marcadamente inclusiva, onde dou conta de iniciativas e de projectos que abrem caminhos novos, que são autênticas utopias a serem concretizadas, tomando como referências experiências de Desenvolvimento Comunitário e de Economia Solidária. No primeiro caso, estamos a falar de projectos de base local, que assentam na Participação activa das comunidades, como é, por exemplo, o caso dos Grupos Comunitários, que são dinâmicas informais, que conjugam a Participação das comunidades com a Parceria das instituições, que intervêm no território com vista à identificação dos seus problemas e necessidades e à reivindicação ou à construção das soluções correspondentes, tendo como objectivo a promoção do seu Bem-Estar e Bem Viver (8). No segundo caso, trata-se de uma lógica económica e de um conjunto de actividades económicas alternativas, assentes no princípio económico de Reciprocidade e nos valores da Cooperação, da Solidariedade Democrática, Emancipatória e Ecocêntrica e da Democracia (9). Em ambos os casos, a Comunidade tem um papel central e evidenciam que é possível enfrentar os desafios actuais construindo e percorrendo caminhos de Esperança baseados nos valores referidos. Este artigo foi publicado na edição nº 30 da revista Líder, cujo tema é ‘Enfrentar’. Subscreva a Revista Líder aqui. Referências Bibliográficas1- Este foi o título do primeiro grande estudo, também conhecido por «Relatório Brundtland», organizado pela Comissão das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Ambiente, publicado em 1987 e onde, pela primeira vez, institucionalmente, se propôs o conceito de Desenvolvimento Sustentável: WCED (1987). Our Common Future. Oxford: Oxford University Press. 2 – Tenho reagido, sistematicamente, contra a descartabilidade fácil de tudo e mais alguma coisa (objectos, consumos, ideias, conceitos e até relações), a que tendemos a ceder, e que nos é “proposta”/imposta pela Sociedade de Consumo, por ficarem “fora de moda”. O conceito de Desenvolvimento Sustentável tem sido, de facto, apropriado e abusado, numa lógica capitalista de greenwashing, mas, atendendo às lutas ecologistas que estiveram na sua origem, pode ser resgatado e reformulado, como fiz em Amaro, R. R. (2016). «A Sutentabilidade das organizações de Economia Solidária – proposta de conceptualização e de avaliação» Revista de Economia Solidária, pp. 98-123). 3 – Hardin, G. (1968). «The Tragedy of the Commons». Science, New Series, Vol. 162, No. 3859 (Dec. 13, 1968), pp. 1243-1248. 4 – Ostrom, E. (1990). Governing the Commons -The Evolution of Institutions for Collective Action. Cambridge: Cambridge University Press. 5 – Ver, por exemplo, entre uma vasta e variada literatura que tem sido produzida nos últimos 30 anos, De Angelis, M. (2017). Omnia Sunt Communia – On the Commons and the Transformation to Postcapitalism. London: Zed Books. 6 – https://bancopalmas.com 7 – Cf., nomeadamente, Marques, R. (2017). Problemas Sociais Complexos e Governação Integrada. Lisboa: Fórum para a Governação Integrada, pp. 86-88. 8 – Cf. Amaro, R. R. (2018). Manual de Práticas e Métodos sobre Grupos Comunitários. Lisboa: Leigos para o Desenvolvimento, p. 18. Sobre as experiências dos Grupos Comunitários, criados, pela primeira vez, em Lisboa, em 1993, e de que, actualmente, existem 21 em Lisboa, 27 na Área Metropolitana de Lisboa, 3 em São Tomé e Príncipe, 2 em Angola e 6 no concelho de Arouca, ver, por exemplo: Amaro, R. R. (2022). «Desenvolvimento comunitário em Portugal: caminhos para o aprofundamento da democracia (uma governança local partilhada e participativa em contexto de crises)». In Economia Local, Comunitária e Solidária – O Desenvolvimento Visto de Baixo. Estivill, J. e Balsa, C. (org.). Ribeirão: Editora Húmus, 192-282; Amaro, R. R. and Ferreira, B. (2023). «Community groups in Lisbon – “Common” paths to democratic co-management in the city», in Esteves, A. M. et al. (eds.). Solidarity Economy – Alternative Spaces, Power and Politics. New York and London: Routledge, pp. 190-205. 9 – Sobre o conceito de Economia Solidária, cf., por exemplo: Laville, J.-L. (2018). A Economia Social e Solidária – Práticas, Teorias e Debates. Coimbra: Almedina e CES- Universidade de Coimbra; Amaro, R. R., Correia, E. & Ferreira, B. (2022). A Economia Solidária nos Açores (e em Portugal) – Um percurso de 25 anos: de onde se partiu, onde se está, para onde se vai. Ponta Delgada: CRESAÇOR (documento policopiado). O conteúdo O futuro é possível? O papel da comunidade e o valor da cooperação aparece primeiro em Revista Líder.