Hoje, já não é a máquina que apenas observa. Faz – quase – tudo por nós. Calcula, projecta, antecipa, resume, decide. Há dashboards para tudo e algoritmos que parecem saber tudo. No meio deste automatismo confortável, instala-se o cansaço da certeza. Somos treinados para reagir depressa, pensar pouco, confiar no padrão. Esquecemo-nos do que é olhar as coisas pela primeira vez, sentir o frio na barriga da dúvida, saborear a inquietação que nos obriga a pensar para lá do óbvio.A diferença, agora, não está na técnica nem na eficiência. Está na coragem de não aceitar respostas prontas, de resistir ao fácil, de olhar o mundo com olhos vadios e mente aberta. É aqui que nasce a verdadeira inteligência humanista, em contraponto à inteligência artificial: uma inteligência feita de perguntas, de pausa, de recusa do automatismo. Uma lucidez inquieta, que não sobrevive em piloto automático, que quer viver com densidade e inteireza.Ser humano, neste tempo, é cultivar a inquietação como resistência. É não aceitar respostas fáceis. É valorizar a pausa e o silêncio no meio do ruído algorítmico. É ousar duvidar quando todos parecem certos, hesitar quando tudo apela à pressa, construir perguntas onde já só se pedem resultados.A inteligência humanista nasce do espanto: diante do mundo, dos outros, da ambiguidade, da incerteza, daquilo que não se deixa reduzir a código ou norma. Não é um regresso ao passado, é uma reinvenção do presente. Num mundo saturado de dashboards, só quem ousa o espanto, quem aceita não caber nos modelos, consegue realmente ver.O espanto não é ingenuidade. É um acto de rebeldia criativa. É manter viva a centelha do pensamento livre, capaz de romper com a apatia e questionar o que parece intocável. É ser vadio na forma de pensar, recusar-se a aceitar fronteiras impostas ao possível, reinventar a dúvida como ferramenta de construção de sentido.Neste contexto, faz todo o sentido criar espaços e momentos onde o espanto se torne colectivo. Um festival de filosofia como o Espanto, em Cascais, não é apenas um evento: é uma insurreição tranquila contra a preguiça mental. Um convite a pensar devagar, a duvidar com gosto, a debater sem medo do ridículo.Num mundo que tudo quer igual e previsível, reunir pessoas para conversar sobre o essencial é um acto de rebeldia. O Espanto não é só um festival: é um manifesto vivo. É o lugar onde se celebra o risco de não caber, a coragem de não ser automático, o privilégio de continuar humano num tempo que tudo quer maquinal. É reencontrar, juntos, o frio na barriga que nos impede de adormecer para a vida.E talvez seja disso que mais precisamos hoje: de espaços para recuperar a inquietação como forma de estar. De tempo para reaprender a perguntar. De coragem para aceitar que a dúvida é uma força, não uma fraqueza.No fim, só quem se espanta pode criar o novo. Só quem duvida é capaz de mudar. Só quem se atreve a ser inquieto – no pensamento, nas perguntas, na forma de estar – resiste ao tédio seguro da rotina.O resto, esse… que a máquina faça.O conteúdo Contra a preguiça mental aparece primeiro em Revista Líder.