Minha vida sem destino, entre o caboclo na rede e a tia na rua

Wait 5 sec.

O pai dizia que caboclo era bicho preguiçoso, que só queria pescar o peixe do almoço, almoçar e deitar na rede. Eu ouvia aquilo ao contrário: criava dentro de mim o meu paraíso, o de viver o tempo todo balançando na rede. Não podia nem retrucar o pai – não se retrucava pai naquele tempo, ainda mais o meu que era quase uma entidade aos meus olhos.Ele também contava da irmã dele, que vivia de catar lixo nas ruas de São Paulo. Se havia lamento na voz trovejante do pai, eu ficava imaginando como seria viver deambulando por uma cidade grande. No meu sentimento de menina, achava uma liberdade sair pela vida, sem destino certo, sem ninguém para obedecer.Essa mistura daquilo que o pai chamava de caboclo preguiçoso e tia que não deu certo na vida criou quase que um mapa do meu destino: o gosto por ficar quietinha, dormindo dormindo ou dormindo acordada e o de deambular pela vida, demarcando, no próprio vagar, o mapa dos meus passos, quase sempre solitários, mesmo nos tempos em que vivia cercada de gente.Esse caboclo preguiçoso e essa tia deambulante, personagens míticos que o pai involuntariamente criou em mim, são quase parte do meu corpo simbólico. Preciso das ruas e das redes como preciso de água e pão, no sentido metafórico e no sentido literal. Escolhi, atavicamente, deixar o mundo se virando sozinho, como no poema muito conhecido de José Régio, o Cântico Negro.“Vem por aqui”, dizem-me alguns com olhos doces,Estendendo-me os braços, e segurosDe que seria bom que eu os ouvisseQuando me dizem: “vem por aqui”!Eu olho com olhos lassos(Há nos meus olhos ironias e cansaços)E cruzo os braços,E nunca vou por ali…”Desde muito cedo, me sentia meio preguiçosa e ao mesmo tempo andarilha. Até hoje, se o bicho pega, tenho sempre ao alcance duas saídas de emergência: a rede e a rua. Como calhei de morar numa cidade sem rua, ficar quietinha, dormindo acordada ou sonhando dormindo, é o meu esconderijo certo.Não poucas vezes, dormir resolve meus problemas. Durmo e quando acordo a coisa diminuiu de tamanho ou se aquietou em forma de deixa-estar-pra-ver-como-é-que-fica. Nada a ver com a ideia conscientemente formulada de que ao dormir o inconsciente toma conta da gente e nos oferece uma solução. Sim, tenho consciência de que o meu inconsciente manda em mim, mas sei que ele não é um remedinho que tiro da caixa, não está ao alcance de minha decisão. Aquilo que está em mim e sobre o qual não tenho nenhum domínio age por si mesmo. É a rede que balança só de eu mover um braço, dobrar uma perna. Ela se move sem que eu perceba. Depois que deito na rede, ela não é mais o pano inerte nem meu corpo é mais um corpo uno – se é que existe corpo uno, nem creio – mas somos agora uma outra coisa.A rede, aqui, também é metafórica. Até tenho uma rede real, de pano alaranjado, mas a minha rede é simbólica, que o pai me deu a partir do que ele nem mesmo queria me dar – a ideia de que pescar para comer e depois se embalar na rede é a minha imagem de plenitude. “Sempre posso dormir”, penso quando o bicho pega. E durmo de verdade, em mim não falta sono. Calculo, com um pouco de lamento, que dormi quase a metade da vida. Porque logo cedo desconfiei que viver era um padecimento só, entremeado de formosuras reais ou sonhadas.Tirante a rede, tenho a rua, como eu disse. Para esse modo de sonhar acordada existe um verbo meio literário, o flanar, uma palavra chiquimente francesa, que vem do flâneur, personagem que nasceu com as cidades modernas. Para praticar a flanagem, nas palavras de João do Rio, mestre brasileiro supremo dessa arte, “é preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível”, escreveu o carioca em “A alma encantadora das ruas” (dá pra baixar o pdf gratuitamente no site da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro).É preciso, ainda flanando em João do Rio, se dispor à “vagabundagem”. Ele mesmo fica meio constrangido em conferir todo o peso à palavra, porque “vagabundo” é léxico pesado, tanto e tanto que virou um dos xingamentos mais comuns praticados em geral para ofender mulheres e pessoas pobres. No meu tempo de repórter de polícia, anos 1980, os delegados usavam fartamente do artigo 42 da Lei das Contravenções Penais (ainda em vigor, porém não mais usado) para prender negros que não tivessem carteira assinada na mão. Era a prática do racismo misturada com a mercantilização da vida urbana.Sou vadia, fui feita pra vadiar, como no samba de Candeia eternizado na voz de Clementina de Jesus. Ainda mais depois que, fantasiosamente, incuti em mim esses dois personagens. Com a história da tia que, no começo dos anos 1960, vagava pelas ruas de São Paulo, minha preguiça quase atávica ganhou legitimidade. Talvez, penso agora, aquela tia simbolizasse a fuga dos cercados da vida, das exigências do mundo. Se viver seria tão complicado, talvez viver erraticamente pelas ruas fosse um modo de fugir da prisão que eu também já previa.Então, segui assim, mistura de tia na rua e caboclo na rede. Se eu tivesse a pachorra de calcular hipoteticamente a proporção de horas dormidas com horas acordadas em toda a minha vida já vivida diria que foi quase meio a meio, quase dormir o mesmo tanto que passei acordada – e aí posso contar uma vantagem: sem remédio, exceto em alguns (poucos) momentos muito difíceis de minha vida adulta.Sem a preguiça, portanto, eu não teria seguido viva e minimamente viável. E se a fórmula deu certo até agora, não tenho nenhuma intenção de mudá-la. Essa crônica, por exemplo, boa ou ruim, comecei a tentar escrevê-la noite passada. Resultou imprestável. Resolvi dormir, acordei e ela saiu quase pronta. E acho que ficou boa pra meu gosto, pra meu jeito, pra minhas possibilidades.O poema de José Régio, poeta português filho de uma doméstica com um ourives, termina assim:“A minha vida é um vendaval que se soltou.É uma onda que se alevantou.É um átomo a mais que se animou…Não sei por onde vouNão sei para onde vouSei que não vou por aí”.* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.