Da periferia ao mundo do Venture Capital: “Nunca aceitei viver nos limites impostos pela sociedade”

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Empreender no Brasil está longe de ser um caminho fácil. Para as mulheres pretas, porém, a jornada é ainda mais difícil. Além dos desafios comuns a qualquer empresário, como a burocracia e a instabilidade econômica, elas enfrentam questões de racismo, desigualdade e acessos negados. De acordo com um estudo do Núcleo de Pesquisa e Gestão do Conhecimento (NPGC), da Unidade de Estratégia e Transformação do Sebrae Nacional, o rendimento das mulheres negras donas de negócios é 61% inferior ao dos homens brancos; 49% menor em comparação com as mulheres brancas; e está 28% abaixo dos homens negros. Já uma pesquisa realizada pelo Plano CDE, Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF) e Instituto Feira Preta, revela que a taxa de recusa de crédito para empreendedores negros chega a 44%, enquanto para os brancos é de 29%.Apesar desse cenário adverso, algumas mulheres têm conseguido driblar o preconceito e romper barreiras. É o caso de Thaís Borges, autora de “Furei a Bolha” (Trend Editora), lançado em novembro de 2024. Nascida na periferia da zona norte de São Paulo, iniciou a jornada profissional como operadora de telemarketing e, atualmente, acumula funções de destaque. É cofundadora da Growth Gate e do Instituto Ella Impacta, iniciativa global que apoia mulheres empreendedoras e em situação de vulnerabilidade, e investidora-anjo e líder de comitê da Bossa Invest, uma das maiores empresas de venture capital do mundo. É também conselheira do Instituto Êxito de Empreendedorismo e head de startups e empreendedorismo na Associação Nacional de Executivos (ANEFAC).“Nunca imaginei que chegaria onde estou. Com 15 anos, meu sonho era ter um carro e passar as férias na praia", brinca. Sua vontade de ocupar espaços que diziam não ser para ela, no entanto, a motivou. “Sempre fui um pouco inconformada. Lembro de meu pai falar para me proteger: ‘filha, esse lugar não é para você; só tem branco’. Mas se as outras pessoas conseguiam, por que eu não conseguiria?”, afirma. Por isso, ao longo da carreira, desenvolveu o propósito de se comprometer ativamente com a mudança social, especialmente apoiando mulheres em situação de vulnerabilidade que desejam empreender." “Quero que minha história sirva como um lembrete de que, independentemente da cor, origem ou circunstâncias, é possível conquistar o que antes parecia inatingível”.À Exame, conta os caminhos que percorreu para chegar até aqui e superar os obstáculos que a sociedade costuma impor para mulheres pretas da periférica. As bases de crescimentoThais cresceu em uma família humilde e, até os cinco anos, viveu em uma casa no terreno dos avós maternos. Depois, seus pais compraram uma casa no bairro do Cambuci, mas não conseguiram arcar com as prestações e, incentivados pelo chefe do pai, decidiram investir em duas máquinas de sorvete em troca da dívida e da casa. Assim, abriram uma sorveteria e moraram por um período nos fundos do empreendimento, até voltar ao “quilombo”.No breve período em que morou no Cambuci, também precisou lidar com o racismo nas brincadeiras com as meninas da vizinhança. “Eram loiras e gostavam de imitar o ‘Xou da Xuxa’. Como não havia paquitas negras, eu era deixada de lado”, conta.Mas os desafios financeiros e sociais não a paralisaram. “Nunca liguei de ser ‘a única preta no meio dos brancos’ e não aceitava que deveria viver dentro dos limites da periferia, circulando apenas em lugares que pretos circulam, sonhando os sonhos que pessoas com poucas oportunidades ‘deveriam’ sonhar”. Foi com esse pensamento que começou a desbravar as oportunidades e se destacar. Nesse sentido, participar da comunidade da Igreja Batista desde criança foi fundamental. “Convivia com pessoas de classes sociais diferentes da minha, que foram minha referência de uma vida com mais conforto e menos faltas”, diz. Para a empresária, essa é a grande questão: enquanto não se sabe que é possível, não se amplia o radar.“A forma como você se enxerga faz toda a diferença”Desde o início da carreira, pautou seu crescimento no estudo e na capacidade de superar os próprios bloqueios por meio do autoconhecimento. "Primeiro, você precisa entender a origem dos sentimentos de insegurança. O que te trava? Por que não acredita em seu potencial e se sente inferior? Essa consciência é transformadora e está baseada em toda a história da mulher na sociedade, que por muito tempo foi limitada por padrões impostos de comportamento”, diz.Esse entendimento foi um divisor de águas. Quando atuava como operadora de telemarketing, por exemplo, soube de uma vaga na Systax, que oferece soluções em inteligência fiscal, e mesmo sem a concorrência aberta, não hesitou: com coragem e “cara de pau”, como ela mesmo diz, conseguiu o emprego. Com o intuito de avançar, fez todos os cursos de aperfeiçoamento disponíveis e se tornou uma especialista na linguagem técnica do negócio e, posteriormente, sócia da companhia. Depois vendeu sua parte para um grupo estadunidense e, hoje, atua como diretora na companhia.Além disso, fez duas graduações – em Administração e Marketing –, além de um MBA em Gestão Estratégica e Econômica de Negócios. Os benefícios da liderança femininaEntre as maiores dificuldades que as empreendedoras enfrentam, Thaís destaca o acesso a investimentos. Muitas vezes, ressalta, somos questionadas sobre aspectos pessoais, como maternidade ou estado civil, o que acaba ofuscando nosso potencial. Porém, a empresária enxerga esses pontos como força e não fraqueza. “Temos um olhar diferenciado, uma empatia e uma visão única de mercado que podem transformar qualquer negócio”, afirma. Sua recomendação é inserir logo no início de um pitch (nome dado às apresentações para investidores) os benefícios da liderança feminina. “Há diversas pesquisas que mostram o impacto das mulheres para a expansão e lucratividade das organizações”.Além disso, é fundamental entender profundamente o mercado, incluindo concorrentes, público-alvo, impacto e potencial de crescimento. E deixa uma provocação: “O que de melhor pode acontecer quando você finalmente decide acreditar em si mesma e buscar o que merece?” A história de Thaís mostra que pode resultar em grandes conquistas.