Para quem nasceu ou cresceu do final dos anos 1980 para cá, é impossível imaginar um mundo sem a música do Tears for Fears. Os singles mais populares do grupo são inescapáveis no rádio até hoje. São parte inexorável da cultura popular.Entretanto, é difícil acreditar que, em dado momento, eles eram artistas sem muita confiança da gravadora. Eram vistos como esquisitos, mais preocupados com difundir princípios de terapia primal do que fazer música pop de acordo com os gostos dos executivos.Ainda assim, eles trilharam seu próprio caminho. Fizeram músicas desesperadas para um mundo à beira do colapso — e se conectaram ao público por isso.Essa é a história.Terapia primalRoland Orzabal e Curt Smith se conheceram aos 13 anos na cidade de Bath, no Reino Unido. Ambos tiveram infâncias difíceis: foram vítimas de abuso físico e negligência por parte de seus pais de classe trabalhadora. À procura de uma saída desse ciclo, os dois mergulharam na música e começaram uma série de bandas.A mais bem-sucedida foi Graduate, um quinteto inspirado em Elvis Costello que chegou a lançar um single chamado “Elvis Should Play Ska” (1980). O compacto não fez sucesso no Reino Unido, mas atingiu o top 10 na Espanha. Ainda assim, o desconforto das turnês aliado às disfunções normais de uma banda com cinco pessoas fizeram Orzabal e Smith abandonarem o projeto um ano depois.A dupla nessa época já via as limitações do rock tradicional. Eles estavam escutando bastante os trabalhos mais experimentais de Peter Gabriel, David Bowie e Talking Heads, que expandiram as fronteiras do que era possível na música pop. Além disso, eram completamente devotos aos ensinamentos de Arthur Janov.Para quem não conhece Arthur Janov, ele é o pioneiro de um tratamento chamado terapia primal. Trata-se de uma técnica na qual pacientes repetidamente confrontam e experimentam novamente seus traumas de infância para poder superá-los.Seu paciente mais famoso foi ninguém menos que John Lennon. O Beatle se inspirou tanto no seu tratamento a ponto de seu primeiro álbum solo, “Plastic Ono Band” (1970), conter muitos dos princípios desenvolvidos pelo médico.Os melhores covers de Tears for Fears segundo Curt SmithO nome Tears for Fears foi tirado por Orzabal e Smith de um livro escrito por Janov chamado “Prisoners of Pain” (1980). A ideia central era manter todo o controle em torno da dupla central, com outros músicos apenas na função de contratados. Assim, eles poderiam evitar os conflitos internos de projetos anteriores.Sucesso inicialA princípio, o Tears for Fears parecia fora de lugar na música pop da época. O início dos anos 1980 foi marcado pelo surgimento do synthpop, uma sonoridade que Roland Orzabal e Curt Smith abraçaram com vontade. Entretanto, ainda se tratava de um grupo de instrumentos tradicionais, fugindo da configuração normal do estilo.Eles eram rock demais pro synthpop e synthpop demais para rock. Sem falar que, com suas letras inspiradas pela obra de Arthur Janov, eram depressivos demais para ambas as tribos.Os dois primeiros singles lançados pelo grupo, “Suffer the Children” e “Pale Shelter (You Don’t Give Me Love)”, não entraram nas paradas. Eles precisavam desesperadamente de um hit. A inspiração veio graças ao Duran Duran.Em entrevista ao The Guardian no ano de 2013, Roland Orzabal contou a história da origem de “Mad World”:“Eu não contei isso para muita gente, mas estava escutando à Radio 1 nesse rádio pequeno e ‘Girls on Film’ do Duran Duran começou a tocar. Eu pensei: ‘acho que devia tentar fazer algo assim’. Eu fiz e acabou sendo ‘Mad World’. Soava horrenda no violão, só comigo cantando.”Os elementos posteriores começaram a entrar no lugar. Orzabal e Smith conheceram Ian Stanley, um mago de sintetizadores que se tornou o tecladista do Tears for Fears e ajudou a criar o arranjo de “Mad World”. Entretanto, o toque final demandou humildade por parte de Roland: ele percebeu ser a voz errada para a música e fez seu parceiro cantar a versão final.A melhor música dos anos 80 segundo Mike Shinoda (Linkin Park)“Mad World” chegou ao 3º lugar das paradas britânicas e fez a gravadora mudar de ideia sobre a viabilidade do projeto. O álbum de estreia do Tears for Fears, “The Hurting” (1983), obteve sucesso no Reino Unido, porém repercussão apenas moderada nos Estados Unidos. Esperado, considerando se tratar de um disco conceitual sobre traumas de infância. A imprensa britânica, por sua vez, detestou o trabalho. Caracterizou as letras do álbum como samba de uma nota só e a música como regurgitação de influências sem muito critério por parte da banda.Para seu próximo trabalho, eles precisariam expandir seus horizontes e transcender suas inspirações. Felizmente, a dupla Orzabal-Smith tinha mentalidade adequada.ExpansãoO nome “Songs from the Big Chair” vem de uma minissérie americana chamada “Sibyl”. Estrelada por Sally Field, a personagem título é uma jovem que desenvolve diversas personalidades alternativas para lidar com seus traumas. Os únicos momentos nos quais ela se sente confortável o suficiente para ser si mesma ocorrem quando está sentada na poltrona do seu psicólogo.Essa era a mensagem passada pelo Tears for Fears. Eles não queriam mais agradar a gregos e troianos com versatilidade musical. Agora seguiriam suas próprias vontades. Até porque a dupla sentiu que haviam exaurido a fonte de Arthur Janov.A música do Tears for Fears que traz 8 referências aos BeatlesEm entrevista ao jornal Las Vegas Weekly (via Classic Pop Mag), Roland Orzabal explicou:“Acho que toda nossa visão de mundo, musical e filosófica como Tears for Fears, se concretizou em ‘The Hurting’. Quando a gente terminou aquele álbum foi quase como a gente pensar: ‘Ok, a gente falou o que queríamos. O que fazemos agora?’.”Em meio a isso, a gravadora queria tanto um sucessor de “The Hurting” a ponto de exigir outro single — “The Way You Are”, uma decepção comercial que a banda detesta — e estabelecer um prazo para seu próximo álbum: julho de 1984.Ao contrário das sessões de “The Hurting”, nas quais a banda se enfurnou num estúdio com o produtor Chris Hughes e ficou obcecada com todo e qualquer detalhe das gravações, dessa vez a abordagem seria mais relaxada. Orzabal e Stanley montaram um estúdio caseiro onde trabalhavam com Hughes e o engenheiro de som Dave Bascombe. Como não era um ambiente corporativo, havia uma presença maior de amigos, namoradas e esposas. Tudo isso contribuiu para uma atmosfera mais leve.Seguindo o tema de “Sibyl”, cada uma das canções em “Songs from the Big Chair” simbolizaria um conceito diferente associado ao mundo moderno. Musicalmente, o grupo tirou mais inspiração de rock progressivo, especificamente as composições impressionistas de Robert Wyatt.Entretanto, o álbum ainda necessitava uma transição entre “The Hurting” e essa nova fase. Isso se manifestou na forma de “Shout”.Em entrevista ao Classic Pop Mag, Orzabal falou sobre a origem da música:“Composição é sobre o quão aberto você é, e quando se é jovem, você está naturalmente mais aberto. Eu tinha um mês de folga e estava carregando um monte de ritmos de canções que amava numa bateria eletrônica LinnDrum. Uma delas era do álbum ‘Remain in Light’ (1980), do Talking Heads. Foi aquele ritmo, mais eu e um sintetizador Prophet numa sala com muito eco. Eu entrei num estado semi-hipnótico e ‘Shout’ simplesmente brotou do éter. Foi o ponto e virada, porque ‘Shout’ tem aqueles temas familiares de nossas canções mais antigas, mas era ‘The Hurting’ crescido.”O mundoO prazo para a entrega do álbum logo passou batido. Na esperança de apaziguar os ânimos da gravadora e mostrar que estavam trabalhando, o Tears for Fears entregou o single “Mothers Talk”. A música foi uma das primeiras compostas para o disco e já havia aparecido durante a turnê de “The Hurting”. O compacto saiu em agosto de 1984 e atingiu o top 20 britânico, assim como o top 40 da Billboard. Não era uma maravilha, mas segurou a barra até novembro, quando “Shout” chegou a público. O single conquistou o 4º lugar no Reino Unido na virada para 1985.Entretanto, o maior sucesso de “Songs from the Big Chair” surgiu no final das gravações. Construída em cima de dois acordes que Roland Orzabal tocava de brincadeira em pausas durante as gravações de “Shout” e uma batida inspirada em “Waterfront”, do Simple Minds, “Everybody Wants to Rule the World” era exatamente aquilo que a gravadora queria. Um single perfeito para pessoas escutarem no carro. Mesmo assim, o músico não tinha certeza se isso encaixava na visão do grupo.A opinião de Curt Smith sobre Tears for Fears ser descoberto por novas geraçõesEm entrevista à Classic Pop Mag, ele explicou seu raciocínio:“A batida era completamente diferente ao nosso jeito de operar. Era alegre em vez de quadrada e rígida como ‘Shout’, mas continuou nosso processo de nos tornar mais extrovertidos.”Não que a letra fosse alegre como a música. 1984 representou um período turbulento, com tensões nucleares entre os Estados Unidos e a União Soviética crescendo, e Orzabal traduziu a ansiedade de viver num mundo à beira de colapso por causa da ambição de políticos de um jeito capaz de qualquer um compreender.Além disso, a letra continha uma alfinetada direcionada à gravadora. “Shout”, com seus seis minutos de duração, não se adequava ao formato de rádios pop, então a Mercury decidiu fazer uma versão na qual ocorria um fade out no meio. Em “Everybody Wants to Rule the World, Orzabal colocou o verso:“So sad they had to fade it” (“Tão triste que colocaram o fade out”)As consequências do sucesso“Songs from the Big Chair” saiu em 25 de fevereiro de 1985, sete meses após o prazo estabelecido pela Mercury Records. “Everybody Wants to Rule the World” foi lançada como single três semanas depois.Tanto o álbum como a canção se provaram o momento no qual o Tears for Fears se tornou uma das maiores bandas do planeta, atingindo o topo das paradas americanas e a 2ª posição no Reino Unido. Esse sucesso estrondoso ajudou “Shout” a ter um novo gás nos Estados Unidos, onde se tornou o segundo compacto do grupo a chegar ao 1º lugar da Billboard. “Head Over Heels”, lançada em junho de 1985, também apareceu no Top 5 estadunidense.Ao todo, “Songs from the Big Chair” vendeu mais de 9 milhões de cópias mundialmente, mais da metade nos Estados Unidos. O sucesso do álbum permitiu que Orzabal e Smith até conhecessem alguém vital para seu desenvolvimento pessoal: A dupla foi abordada por ninguém menos que Arthur Janov, interessado em conhecê-los. Entretanto, havia segundas intenções.Em entrevista ao The Quietus, Curt Smith resumiu a história:“Ele começou a nos perguntar se estávamos interessados em escrever um musical sobre terapia primal. Foi nesse momento em que eu perdi a cabeça.”Os 5 discos sem os quais Curt Smith (Tears for Fears) não viveO período seguinte ao sucesso de “Songs from the Big Chair” foi reservado para turnês e os dois integrantes aproveitarem os frutos de seu sucesso. Roland Orzabal finalmente pôde fazer terapia primal, enquanto Curt Smith perdeu a vontade após o encontro desanimador com Janov.Quanto ao próximo álbum do Tears for Fears, o público precisou esperar quatro anos. “The Seeds of Love” saiu em 1989 e, embora tenha vendido mais de dois milhões de unidades pelo mundo, não teve o mesmo impacto de “Songs from the Big Chair”. Impossível.O processo de gravação foi incrivelmente desgastante. Ian Stanley decidiu sair da banda antes mesmo do álbum ser lançado. O produtor Chris Hughes também abandonou as sessões no início, sendo substituído por Dave Bascombe.O Tears for Fears terminou dois anos depois, após Roland Orzabal e Curt Smith terem uma briga feia. O primeiro continuou o projeto essencialmente como artista solo.Os dois ficaram quase 10 anos sem se falar antes de se reunirem em 2004. Permaneceram juntos desde então.Por que o Tears for Fears quase acabou de vez em 2019Tears for Fears — “Songs from the Big Chair”Faixas:ShoutThe Working HourEverybody Wants to Rule the WorldMothers TalkI BelieveBrokenHead over Heels / Broken (live) (reprise)ListenMúsicos:Roland Orzabal (vocais, teclados, guitarras, baixo sintetizado na faixa 1, programação LinnDrum na faixa 1, piano de cauda na faixa 5)Curt Smith (vocais, baixo, baixo sintetizado na faixa 3)Ian Stanley (teclados, programação LinnDrum, arranjos na faixa 8)Manny Elias (bateria nas faixas 2 a 7, arranjo de bateria na faixa 2)Músicos adicionais:“Shout”: Chris Hughes (bateria), Sandy McLelland (backing vocals)“The Working Hour”: Andy Davis (piano de cauda), Mel Collins (saxofone), Will Gregory (solos de saxofone), Jerry Marotta (percussão e arranjos de saxofone)“Everybody Wants to Rule the World”: Neil Taylor (segundo solo de guitarra), Chris Hughes (programação LinnDrum e MIDI)“Mothers Talk”: Stevie Lange (backing vocals)“I Believe”: Will Gregory (saxofone)“Broken”: Neil Taylor (solo de guitarra)“Head Over Heels”: Andy Davis (piano de cauda), Marilyn Davis (backing vocals), Annie McCaig (backing vocals), Sandy McLelland (backing vocals)“Listen”: Marilyn Davis (vocais operísticos)“The Big Chair”: samples de diálogos do filme Sybil (1976)Quer receber novidades sobre música direto em seu WhatsApp? 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