Finalizando o inverno seco, virão as primeiras tempestades marcando a próxima estação e, com elas, as velhas cenas se repetirão em imagens de jornal e TV. O céu desabando, a cidade parada, vidas destruídas. Carros boiam nas avenidas como folhas, o asfalto se transforma em correnteza que, não tendo para onde ir, invade casas, lojas, hospitais, escolas, mercados e leva pessoas afogando-as. Gritos assustados misturam-se ao barulho da água que sobe inclemente sem pedir licença, seguindo o caminho natural que a geografia, alterada de forma inconsequente pelos homens, impôs às águas. Há sempre um vídeo novo, um relato desesperado, um abrigo improvisado — um ritual hipernaturalizado pela repetição sistemática dos fatos que já não surpreende mais ninguém.O que realmente espanta não é a força da chuva, mas nossa persistente falta de preparação. Como se o calendário não tivesse avisado, como se os alertas não tivessem sido emitidos, como se a ciência não avisasse, como se o problema não estivesse escancarado na porta de cada rua sem bueiro limpo, em cada encosta sem contenção, em cada córrego sufocado pelo concreto. Alagamos, choramos, prometemos, esquecemos. E então, começa tudo outra vez. Não se trata de uma surpresa climática, mas de um descaso acumulado. O investimento em drenagem urbana e captação de águas pluviais foi sendo adiado, substituído por soluções pontuais e empurrado para a próxima gestão. Não adianta postergar, pois a água que cai do céu não espera calendário. A conta chega. Para todos.Quebra o azulejo da cozinha da dona Diva, arrasta o estoque do pequeno mercado da esquina, paralisa ônibus, metrô, entrega, criança não chega na escola. Os prejuízos se somam em silêncio e o barulho vem depois, na tentativa de culpar o clima, o destino, a má sorte. Rezar tampouco resolve.Mas não é só a periferia que vem inundando, destruindo vidas. As enchentes recentes no Rio Grande do Sul mostraram que quando a natureza transborda, cobra o seu lugar geográfico, não há CEP que salve. Vemos bairros inteiros submersos, famílias em telhados, edifícios de todo tipo, sejam bancos, museus, prefeituras, fábricas, todos evacuados sem distinção de classe, idade, profissão, tentando salvar o que pode ou apenas sobreviver.E então a imagem que fica: um cavalo isolado sobre um telhado. A cidade submersa ao fundo. Lembram-se caros leitores? A enchente levou tudo, menos aquele corpo tenso, parado, que esperava, sozinho, entre o céu cinza e a água barrenta por dias, imóvel. Tornou-se símbolo da nossa negligência, do improviso como política, da urgência que só vem quando já é tarde demais. Enquanto isso, os rios já não são rios. Foram canalizados, cobertos, sufocados. A mata que um dia filtrava a água virou estacionamento. As calçadas que deveriam absorver, refletem. As cidades perderam a capacidade de respirar. Tornaram-se superfícies duras, impermeáveis, incapazes de lidar com o que deveria ser natural: a chuva. Falta ação. Falta prevenção. E falta vontade política.“O investimento em resiliência é uma questão relacionada à prioridade da agenda política”, disse um governador de Estado. A frase, solta em meio ao caos, expõe o problema: enquanto a prioridade não muda, a tragédia se repete. Requalificar a infraestrutura de drenagem, criar jardins de chuva, ampliar áreas vegetadas, retomar o verde nas margens dos córregos, tudo isso é possível. As soluções são várias, mas exige planejamento e continuidade para enfrentar o imediatismo que rege nossas decisões públicas. Siga o canal da Jovem Pan News e receba as principais notícias no seu WhatsApp! WhatsApp Resiliência urbana não se faz com retroescavadeira no dia seguinte. Faz-se antes: com leis que funcionam, zonas de risco desocupadas, crédito para quem quer adaptar sua casa, integração entre habitação, mobilidade, meio ambiente. A cidade precisa desenvolver resiliência e capacidade de adaptação às consequências climáticas inevitáveis. E isso começa reconhecendo que protelar soluções só nos aproxima do desastrePorque, se nada mudar, continuaremos a limpar a lama dos nossos móveis e dos nossos erros.Até que as próximas chuvas alaguem nossas ruas.E inundem as nossas vidas. Leia também Quando a cidade fala e o prefeito não ouve