As emendas parlamentares dos vereadores da capital paulista sustentam uma indústria milionária de eventos com gastos inflacionados promovidos por entidades do terceiro setor e concentração de fornecedores.Os vereadores paulistanos gastaram R$ 200 milhões (78%) dos R$ 256 milhões liberados no ano passado em atividades do tipo, que se encaixam nas categorias de eventos esportivos, culturais e parcerias com projetos sociais.Em contrapartida, as obras em seus redutos eleitorais representam hoje apenas 11% do total das emendas — cerca de R$ 30 milhões. Já as emendas destinadas à área da saúde representaram 7% do total no período.Gastos inflacionados com jogosO Metrópoles analisou centenas de páginas de prestações de contas de entidades do terceiro setor que realizam projetos que vão de aulas de videogame a lutas marciais.A reportagem encontrou uma série de escolhas das entidades que inflam os custos dos eventos, como alugar itens por valores muito superiores aos preços de compra dos bens no mercado e alto percentual de gastos em atividades secundárias – como, por exemplo, dezenas de diárias de fotógrafos que apresentam material de qualidade amadora.Uma das beneficiadas, a Federação Estadual das Ligas de Esportes Amadores do Estado de São Paulo (Felfa-SP) recebeu mais de R$ 8,5 milhões desde 2024 da prefeitura.Naquele ano, ela foi contemplada por uma emenda de R$ 300 mil do vereador Marcelo Messias (MDB), para o patrocínio de uma ação de jogos de videogame chamado Fifa Pro E Sports 6, voltada a jovens da periferia.No caso dela, um ponto que chama a atenção são valores gastos com locações de equipamentos. A prestação de contas da ONG mostra que foram gastos R$ 63 mil relativos a 32 diárias de 10 Playstations 4.A diária de cada equipamento sai por R$ 199 –a reportagem localizou em uma plataforma na internet opção na faixa dos R$ 350 por mês.Embora o aluguel seja uma opção comum em parcerias, a aquisição de bens, em vez da locação, é permitida desde que seja mais barata e siga critérios técnicos. Se a entidade optasse por comprar os equipamentos novos, com cada aparelho na faixa dos R$ 3 mil, seria possível adquirir 21 videogames, que poderiam ser reutilizados em outras edições deste mesmo programa.Os gastos também incluem R$ 70 mil para um gerador, que tem entre suas funções garantir que equipamentos não queimem, embora o valor deles seja muito menor do que o da locação da fonte extra de energia. Entre os diversos profissionais contratados para a ação, estão 32 diárias de um técnico eletricista (total de R$ 12,1 mil) e também de uma fotógrafa profissional (total de R$ 17,5 mil). Leia também São Paulo Petistas mandaram R$ 5 milhões em emendas para TV que defende governo São Paulo Deputado manda emenda para recapear condomínio de famosos onde mora São Paulo CGU investigará emenda de deputado para recapear condomínio onde mora São Paulo Condomínio dos famosos foi cenário de treta de Teruel e Simone Mendes Aluguel de skates e cobertura fotográficaNa Vila Prudente, zona leste da capital, a mesma entidade realizou o programa Skate Para Todos, com verba de R$ 600 mil de emenda da vereadora Edir Sales (PSD). Novamente, os custos com aluguel de equipamentos superam os preços de aquisições dos mesmos itens.De acordo com a prestação de contas, foram alugadas peças para a montagem de 30 skates no valor de R$ 910 cada. Para cobrir o aluguel durante todo o período do projeto, foram gastos R$ 163,8 mil, valor suficiente para comprar cerca de 320 skates, considerando um valor médio no mercado, de R$ 500 por skate profissional.Além disso, a entidade gastou R$ 81,9 mil para a cobertura fotográfica do projeto. A mesma fotógrafa ainda atuou em outros eventos da entidade no ano passado, em diferentes funções – foi a coordenadora técnica da ação relacionada a videogames, com renda de R$ 13,2 mil, e ainda foi monitora da ação para skatistas em Heliópolis, na zona sul. A reportagem encontrou outros casos de coincidência de funcionários em mais eventos.A Felfa-SP realizou eventos que vão de esportes radicais a lutas marciais, segundo o site da Prefeitura de São Paulo. Embora haja variedade de temas, os fornecedores da entidade se repetem. O mesmo fornecedor que aluga videogames, também oferece geradores, skates e materiais para eventos midiáticos de artes marciais.FornecedoresUma das principais empresas contratadas por diversas entidades é a Dmix Eventos, que tem sede no mesmo bairro que a Felfa-SP, o Jardim Sapopemba. Para o evento de games, por exemplo, ela aluga os videogames, monitores, van e gerador, além de fazer arte visual e fornecer parte dos funcionários que atuam na ação.Outra fornecedora é a Gabii Eventos, que no fim do ano passado — após a realização dos eventos —, foi incorporada pela Dmix. Outra prestadora de serviços habitual da Felfa-SP é a Shalom Eventos e Locações, que, de acordo com a Junta Comercial, tem o mesmo endereço que a Gabii Eventos, na mesma sala de um prédio de coworking em um prédio em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo.De acordo com a ficha cadastral da Gabii Eventos, a mudança de sede para o coworking foi registrada em 28 de julho de 2023, mesma data em que a Shalom mudou para o mesmo local.Além da coincidência de endereço, no ano passado, a entidade Instituto Calfazes Ação Social chegou a confundir a Shalom com a Dmix na hora de pagar uma conta.A Dmix e a Shalom negam qualquer vínculo e se dizem independentes.Função “quixoteana”Bancada com uma emenda do vereador Gilson Barreto (MDB), no valor de R$ 320 mil, um projeto da Liga Master de Futebol Amador, que promove a prática entre jovens, usa a criatividade para justificar os gastos, centralizados na empresa Gabii Eventos.A empresa fornece gerente, preparador físico, coordenador técnico, auxiliar administrativo, auxiliar de limpeza, fotógrafo, treinador de goleiro, treinador, auxiliar técnico, editor de fotos, além de empresa especializada em mídia e relatórios, monitor de oficina, designer gráfico e contador.Para justificar a contratação do auxiliar técnico, por exemplo, a prestação de contas apela até para o escritor espanhol Miguel de Cervantes, dizendo se tratar de uma função “quixoteana”.“Algo muito similar à vivência entre Sancho Pança e Don Quixote, no romance escrito por Miguel de Cervantes. Ao puxar na memória, rapidamente, a relação que melhor materializa esta estigmatização no futebol brasileiro é a convivência entre Luiz Felipe Scolari e Murtosa no Palmeiras e Seleção Brasileira e, também, a dupla Muricy Ramalho e Milton Cruz, no São Paulo”, diz o documento.A entidade opta por contratar o fotógrafo por diárias, apesar dos 92 dias de projeto, com custo unitário de R$ 550. Assim, o gasto total com as imagens chega a R$ 50 mil, além de R$ 17,5 mil para edição das fotos e R$ 31 mil para produção de conteúdo.Embora frise o resultado trazido pelo profissionalismo, a seleção de fotos na prestação de contas traz imagens estouradas e fora de foco. A rede social da entidade no Instagram tem como última publicação uma imagem de fevereiro de 2024 – o projeto foi de maio a novembro.Foto anexada em prestação de contas de entidade, que gastou R$ 50 mil com fotógrafo profissionalOutro fator que infla gastos de entidades é o aluguel de tatames por ONGs especializadas em ações de artes marciais. Embora realizem sempre o mesmo tipo de evento, alugam tatames com valores diários por alguns meses, tornando esse tipo de gasto uma quantia expressiva das despesas.Uma das entidades preferidas pelos vereadores, a Confederação Brasileira de Karatê Interestilos (CBKI) é organizadora do Lutar e Vencer, evento recorrente que recebeu emendas de diversos vereadores.Ela paga R$ 42 por dia à Shalom Eventos por cada placa de tatame, incluindo montagem, desmontagem, substituição e transporte. O gasto por seis meses é de R$ 50 mil por 200 placas — a reportagem localizou placas com as medidas previstas por R$ 100, ou seja, com o mesmo valor seria possível comprar mais do que o dobro de unidades.O que dizem os envolvidosEm nota, a Felfa-SP afirmou que os serviços e valores foram analisados e aprovados pela Secretaria Municipal de Esportes, com parecer técnico favorável, e que os custos envolvidos são compatíveis “com a natureza das atividades, a estrutura exigida e os critérios técnicos estabelecidos nos editais públicos”.Sobre a locação dos videogames, a entidade justifica que, além do uso dos equipamentos pelos jovens, os valores incluem seguro, manutenção, montagem e assistência técnica. Segundo a entidade, comprar os equipamentos poderia “imobilizar” o patrimônio “com alto índice de depreciação” e exigir “estrutura de guarda e manutenção contínua”.Em relação ao gasto com gerador para que nenhum videogame queime, a entidade diz que o investimento se justifica para “garantir a continuidade da atividade, a segurança dos participantes e a integridade dos bens locados”. Sobre o aluguel de peças dos skates, em vez de comprar os equipamentos, a entidade afirma que a decisão decorre da “análise técnica de custo-benefício”.Já as diárias para a cobertura fotográfica, segundo a entidade, se justifica como forma de “documentar tecnicamente as atividades para fins de comprovação”. A Felfa-SP diz que o valor contempla diárias com deslocamento, equipamento profissional, cobertura em dois turnos e edição.A entidade ainda afirma que as empresas Gabii Eventos, Shalom Eventos, Dmix prestaram serviços distintos, conforme escopo previsto em cada projeto, e que possuem CNPJ ativo, regularidade fiscal e habilitação técnica.A organização ainda afirma que os profissionais contratados podem atuar em mais de um projeto. Já a repetição de fornecedores, de acordo com a Felfa-SP, se deve à “eficiência operacional, histórico de prestação de serviços e compatibilidade com as exigências técnicas dos projetos”.Também em nota, a DMix diz que adquiriu a empresa Gabii Eventos e que, portanto, esta não “coexiste mais como empresa independente” e que não houve atuação simultânea das duas empresas em um mesmo projeto após a aquisição. A Dmix também afirma que todas as suas atividades são executadas em conformidade com contratos, termos de referência e planos de trabalho aprovados por órgãos públicos competentes.A Shalom Eventos afirmou, em nota, que é pessoa jurídica distinta e plenamente independente. Quanto ao endereço, a empresa diz que o referido local é utilizado exclusivamente para fins administrativos, em sistema de coworking, não havendo qualquer compartilhamento ou operação conjunta com as demais pessoas jurídicas mencionadas.A CBKI defendeu o modelo de aluguel de tatames afirmando que a compra não atende a necessidade do serviço. A contratação “envolve a locação do material com garantia da integridade das peças, transporte, mão de obra para montagem, a manutenção e desmontagem, prevendo no contrato a substituição de peças que venham a ser danificadas no período de contratação do serviço”. A entidade defende os custos e diz que outro modelo encareceria o projeto.A reportagem mandou e-mail para a Liga Master de Futebol Amador, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto.Já a Secretaria Municipal de Esportes e Lazer informou que os processos da pasta respeitam a legislação vigente e que qualquer irregularidade constatada poderá acarretar sanções às organizações sociais. A pasta disse, ainda, que está elaborando uma tabela de preços detalhada para as despesas realizadas por entidades conveniadas, com objetivo de estabelecer critérios para o controle de gastos, fortalecendo a governança e a fiscalização dos recursos destinados ao esporte.O vereador Marcelo Messias, por meio da assessoria, disse que busca fomentar políticas públicas que ampliem o acesso ao esporte, à cultura e ao lazer, especialmente nas periferias. E que não é possível ao parlamentar acompanhar, de forma minuciosa e individualizada, cada detalhe técnico ou contratual de todos os projetos apoiados.“O gabinete permanece à disposição dos órgãos de controle e da sociedade para quaisquer esclarecimentos adicionais e reforça seu compromisso com a transparência e o bom uso dos recursos públicos”, disse o parlamentar.Em nota, a assessoria de Edir Sales afirmou que as emendas são indicadas pelos vereadores às instituições que os procuram para execução de seu Plano de Trabalho. “Cabe a elas administrarem e executarem os recursos do projeto, desde que estejam dentro da lei e de acordo com as normas da Prefeitura”, disse.O Metrópoles entrou em contato com Gilson Barreto (PSDB). O espaço segue aberto para manifestação.