Primeiro, deixe-me apresentar rapidamente por aqui: sou Piero Contezini, fundador e presidente executivo do Asaas. Junto com meu irmão, criamos uma fintech com foco em ajudar os negócios a automatizar seus processos, unindo serviços financeiros e software. A partir de agora, irei publicar por aqui artigos com foco em tecnologia e no mercado em que atuo diariamente.Muito se tem falado sobre a lei Magnitsky, uma lei criada em 2012 e aprimorada em 2016 pelo governo americano para inibir que certas pessoas tenham acesso ao sistema financeiro dos Estados Unidos. Aqui, independentemente de mérito ou questões políticas, o interessante a entender dessa lei é que ela é efetivamente capaz de bloquear uma pessoa ou empresa de fazer praticamente qualquer transação comercial internacional.O motivo disso é simples: o governo americano impõe às empresas americanas e, àquelas que desejam fazer negócios com elas que estas tenham um processo de KYC (Know Your Customer) que valide, junto a uma lista publicada pela OFAC (Office of Foreign Assets Control), nomes com os quais não podemos ter relações comerciais.Lembro que, em 2018, quando começamos a emitir cartões pelo Asaas, tivemos que implementar essa rotina: uma vez por mês, baixar uma lista de nomes, a maioria nomes árabes que nem sequer conseguíamos salvar no banco de dados na época devido ao alfabeto incompatível com o nosso, e validar tanto clientes novos quanto existentes. Caso identificássemos algum, teríamos que bloquear a conta de forma unilateral.O controle disso era tão sério que tivemos que provar efetivamente para a bandeira em questão que os controles estavam funcionando perfeitamente, sob pena de também termos nosso contrato com eles rescindido imediatamente, impactando profundamente nosso negócio na época.Somente agora, em 2025, pudemos entender de fato a utilidade deste procedimento e seu alcance. Mas uma coisa que me fez pensar muito desde que esse tema voltou à tona é o quanto, a cada dia, esse controle se torna menos eficaz no seu objetivo, tanto para o bem quanto para o mal.Até recentemente, a forma mais utilizada para transferir recursos entre países era o SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), uma rede belga de interconexão entre bancos de diferentes países.Podemos pensar nele como um TED internacional, exatamente como o TED: lento, complexo e caro. Mas ele é de fato o padrão para essas movimentações e, uma vez que atende amplamente bancos americanos, ele também tem que seguir a lista da OFAC.Até que o Satoshi (all hail Nakamoto!) criou o Bitcoin com seu paper lendário, uma moeda puramente descentralizada que por definição não tem qualquer relação com o sistema financeiro tradicional.Apesar de ser publicamente rastreável dada a natureza da sua blockchain, o único identificador na rede é uma espécie de chave pública que pode ser guardada por qualquer indivíduo, impressa em papel e sem seu dono revelá-la através do uso da chave privada correspondente; não há como identificar quem tem sua posse.Isso é tão profundo que o criador da moeda até hoje não foi identificado, mesmo estando entre as pessoas mais ricas do planeta atualmente, e estranhamente nunca ter usado 1 centavo da sua fortuna dentro da sua própria rede.Bem, existem casos emblemáticos de juízes oficiando a “empresa Bitcoin", para sequestrar valores, cancelar contas, só para descobrir que não existe um dono, não existe um controlador, sequer existe uma empresa ou uma pessoa com capacidade de decidir como ela funciona. Tudo é feito de forma distribuída entre os detentores dos nós de mineração e validação de transações, estes também geralmente não identificados nominalmente.Outras criptomoedas, como, por exemplo, o Monero, foram criadas com a ideia de garantir realmente que as transações não possam ser bloqueadas por qualquer entidade. Aqui vale um disclaimer: eu sou um purista, não acredito em outras criptomoedas que não o Bitcoin, independentemente da razão de existir delas, justamente porque elas são criadas por pessoas que podem ser identificadas, o que as torna vulneráveis uma vez que se tornem relevantes e mais expostas a influências externas.Semana passada, eu estava nos Estados Unidos fazendo compras em um Walmart e pude ver uma pessoa extremamente simples depositar dinheiro em um caixa de ATM que vende bitcoins e os envia para qualquer carteira bastando a pessoa ter em posse o endereço (uma versão resumida da chave pública do usuário recebedor).Na hora, me veio à cabeça o poder disso: independentemente de ser alguém sancionado, hoje uma pessoa pode criar sua carteira, guardar seus recursos e ficar completamente imune à Magnitsky ou qualquer outro mecanismo que tente congelar seus recursos.Nesse momento, estamos vendo o surgimento de novas formas de organização econômica e social e, por mais paradoxal que seja, talvez dê abertura para justamente as pessoas que são opostas ao movimento capitalista, a possibilidade de movimentar e guardar recursos sem que sejam confiscados. Nem William Gibson foi capaz de prever no seu livro Neuromancer um cenário tão cyberpunk quanto o que estamos vivenciando. Como dizem por aí, o mundo não gira, ele capota.