Policiais pressionam Tarcísio contra lei que demite agente investigado

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Policiais civis e militares estão cobrando o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, para alterar dispositivos em leis estaduais que impedem o retorno à corporação de agentes expulsos durante investigação disciplinar.As Leis Complementares (LCs) 915/2002, para policiais militares, e 922/2002, para policiais civis, possuem dispositivos que tornam definitiva a expulsão de agentes investigados, mesmo que sejam absolvidos das acusações.Isso significa que, se um policial é acusado de algum delito, ele provavelmente será expulso da corporação no momento em que é instaurado um processo disciplinar apuratório. Ao mesmo tempo, a Justiça comum irá julgar o agente pelo delito. Mesmo que seja absolvido (isto é, inocentado) na ação penal, não há como recorrer da decisão que o expulsou do posto.Para os policiais, as normas são inconstitucionais, pois violam o direito ao contraditório e à ampla defesa. No caso específico da PM, há diferenciação clara entre praças e oficiais, contrariando o que determina o que determina o artigo 5 da Constituição Federal, de que todos são iguais perante a lei.As normas foram promulgadas pelo então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (atualmente no PSB). Desde então, de acordo com os agentes ouvidos pela reportagem, diferentes gestões são cobradas pela categoria para alterar as LCs. A pressão, no entanto, teria aumentado no governo Tarcísio, que tem nas polícias um forte capital político.9 imagensFechar modal.1 de 9Governador Tarcísio de Freitas e o secretário da Segurança Pública, Guilherme DerriteFrancisco Cepeda/Governo de SP2 de 9Tarcísio de Freitas e Guilherme Derrite na Solenidade Cívico-Militar em Comemoração ao 93° Aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932Pablo Jacob/Governo do Estado de SP3 de 9Advogada Agda Mendes, secretário Guilherme Derrite e policiais civis em encontro para discutir revisão de LCArquivo pessoal4 de 9Fábio Vieira/Metrópoles5 de 9Derrite ampliou punição de agentes presos por colaborar com o PCCReprodução6 de 9Policiais militares de São PauloFábio Vieira/Metrópoles7 de 9Delegacia da Polícia CivilReprodução8 de 9Tarcísio e Derrite são favoráveis ao fim das saidinhasGoverno do Estado de São Paulo/Divulgação9 de 9Operação Floresta Devastada foi deflagrada nesta quarta-feira (23/4)DivulgaçãoLC 915/2002A LC 915/2002 proposta por Alckmin alterou os artigos 83 e 84 do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar (RDPM), instituído no ano anterior pela LC 893/2001.A mudança vetou recorrer da decisão final do Comandante Geral da PM em processos administrativos demissórios – aqueles que expulsam o agente da corporação.A nova redação dos artigos determina expressamente que não caberá recurso da decisão final, “salvo na hipótese do que dispõe o § 3º do artigo 138 da Constituição do Estado“.O artigo 138, por sua vez, diz que “O servidor público militar demitido por ato administrativo, se absolvido pela Justiça, na ação referente ao ato que deu causa à demissão, será reintegrado à Corporação com todos os direitos restabelecidos”.No entanto, não é o que os policiais dizem vivenciar na prática. “A gente tem, de 2002 até agora, uma série de injustiças que são cometidas, que os policiais militares estão exonerados e não tem o direito de recorrer naquela decisão que ele foi desfavorável, sequer tem espaço para recorrer”, afirmou o PM da reserva, advogado e ex-deputado federal Alexandre Pessoal.Para o advogado, a norma infringe o artigo 5º da Constituição Federal de duas formas: ao não garantir o devido processo legal, tirando o direito de decorrer da decisão, e ao diferenciar os policiais pela patente.Isso porque a LC 915 não alterou o dispositivo que deixa sob responsabilidade exclusiva do governador do estado a demissão de oficiais. Então, apenas praças foram impactados pela mudança.“O processo administrativo é instaurado de forma automática, porque a gente tem uma instrução dentro da PM, que se chama I-40-PM, que já determina que qualquer flagrante que o policial militar seja submetido, ele já responde um processo de demissório, com 90% de possibilidade dele ser demitido antes mesmo da conclusão do inquérito ou da ação pena, mas o oficial, ele não passa por isso. Então, se o oficial for autuado em flagrante, ele não se sujeita a essa mesma regra”, explicou.Alexandre dá um exemplo prático: se dois policiais, um praça e um oficial, forem autuados em flagrante juntos, a regra da I-40-PM será aplicada apenas ao agente de menor patente. “Não tem isonomia nenhuma”, disse. Leia também São Paulo Policial baleado pela Rota: delegada “dispara” contra cúpula da SSP São Paulo Execução em Paraisópolis: comunidade lidera mortes por PMs em SP São Paulo “Não existe racha entre as polícias”, diz Tarcísio após empoderar PM São Paulo Em Lisboa, Tarcísio é anunciado como “presidenciável” e elogia Derrite LC 922/2002Já a LC 922, no caso da Polícia Civil, adicionou dispositivos à Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo (LC 207/1979) que também dificultam o reingresso à corporação de agentes exonerados.Conhecida como via rápida, a LCC 922 mitigou os direitos dos policiais civis, afirma a advogada Agda Mendes. Segundo ela, a norma reduziu o tempo com que questões complexas são julgadas, sem a devida responsabilidade – também ferindo o devido processo legal.A LC determina que “será reintegrado ao serviço público, no cargo que ocupava e com todos os direitos e vantagens devidas, o servidor absolvido pela Justiça, mediante simples comprovação do trânsito em julgado de decisão que negue a existência de sua autoria ou do fato que deu origem à sua demissão”.Na teoria, o texto parece facilitar o reingresso de policiais inocentes à corporação, mas colocou entraves na prática.É o caso do ex-policial civil Fernando Souza, exonerado em 2012 após um caso de lesão corporal. Ele foi absolvido na Justiça comum e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que ele fosse readmitido na corporação.Mesmo com a determinação e a prescrição do fato, em novembro do ano passado, além de um acordo de não-persecução penal com o Supremo Tribunal Federal (STF), Souza não consegue voltar a ser investigador porque a sentença não fala em “inexistência do fato” ou “negativa de autoria”. Agora, ele aguarda um último recurso, que deve ser analisado diretamente por Tarcísio.O ex-policial civil disse à reportagem que espera, diariamente, pela chance de voltar à corporação. “É o meu fantasma, vivo com ele todo dia”, afirmou.PMs impedidos de voltar ao postoO ex-policial militar Marcos Francisco também tem determinação da Justiça para voltar ao posto, após ser absolvido por uma acusação de roubo. Ainda assim, a corporação negou os recursos apresentados.Francisco chegou a ficar dois anos preso no Presídio Romão Gomes, na zona norte de São Paulo, depois de passar por um reconhecimento irregular. Após ser condenado em primeira instância a nove anos e 11 meses em regime fechado, ele foi absolvido em segundo grau por uma turma de desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).Com a absolvição, a defesa do ex-PM entrou com um recurso no Tribunal de Justiça Militar (TJM) para que ele seja reintegrado na corporação. O pedido, no entanto, foi negado – o que minou suas esperanças de voltar ao posto.Hoje ele é empresário e advogado, mas lembra dos ex-policiais que são aliciados pelo crime, sem oportunidades de sustento após a exoneração.“O crime está recrutando essas pessoas. Muitas dessas pessoas não têm a cabeça, a mentalidade para seguir em frente. A violência cresceu de uma forma, e é culpa também do Estado, que está jogando na mão dos criminosos esses policiais preparados”, afirmou.O ex-PM também criticou a conduta de Tarcísio, que demonstrou priorizar outras ações judiciais frente ao caso dos policiais.“É vergonhoso a gente ver o governador do estado subindo num palanque para pedir anistia para pessoas que estão condenadas. Se as pessoas estão condenadas pelo Supremo Tribunal Federal e não cumprem a lei, não reintegram os policiais que estão absolvidos aqui no Estado de São Paulo”, afirmou.Para outro PM expulso da corporação, que prefere não se identificar, a manutenção da norma por Tarcísio e Derrite é uma “verdadeira aberração jurídica”. O agente foi exonerado no início de um processo administrativo que o investigava por homicídio. Ele foi absolvido da acusação no Tribunal do Júri, mas não pôde voltar ao posto.Ele disse ter entrado com um recurso na Secretaria da Segurança Pública (SSP) em 2023, mas que foi “enganado” por Tarcísio e por Derrite, que negaram o pedido.“Todos os recursos administrativos protocolados na SSP estão sendo indeferidos ‘por falta de amparo legal’. Em outras palavras, não estão cumprindo a Constituição Federal, a Constituição paulista e várias leis federais, inclusive na única exceção prevista”, afirmou.Tentativas de diálogo com Tarcísio e DerriteDesde o início da gestão Tarcísio, os policiais tentam dialogar com o governo para que as LCs sejam revistas.“A nossa grande esperança era de que fosse revisto na gestão Tarcísio por vários motivos.  Por ele ser um militar, por ele saber da problemática que envolveu a Lei 922, que é essa via rápida. Então, assim, todos os policiais, tanto no caso dos militares, que tem um dispositivo análogo a esse, quanto os policiais civis, todos ficaram muito esperançosos”, disse Mendes.A advogada destacou que, quando o secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite foi nomeado, ele e o governador do estado prometeram que os casos de injustiça com policiais seriam revistos.“Só que essas promessas foram feitas lá por ocasião das eleições e no início da gestão. Essas promessas foram somente falácias”, afirmou.Ela conta que se reuniu pessoalmente com Derrite para discutir o assunto, mas não surtiu efeito. “Toda vez que a gente bate na porta para conversar – seja com deputados estaduais, seja com secretários, seja tentando falar pessoalmente com o governador –  infelizmente nós temos, de uns, falsas promessas. Outros sequer nos ouvem, dizendo que, na verdade, isso é impossível de acontecer”, contou.Mendes disse que a categoria espera, agora, pelo projeto que prevê adequação de todas as leis estaduais à Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis. “A gente está na expectativa de que essa alteração traga bons frutos para os policiais, mas eu não acredito que isso vai acontecer”, afirmou a advogada.Deputados foram cobradosAlém do governador e do secretário da Segurança Pública, deputados da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) também foram cobrados sobre o tema.A reportagem contatou aqueles que tratam de questões envolvendo as forças de segurança na Casa legislativa: Conte Lopes (PL), Delegada Graciela (PL), Capitão Telhada (Progressistas), Tenente Coimbra (PL), Delegado Olim (Progressistas), Major Mecca (PL) e o deputado Reis (PT). Apenas Olim e Reis retornaram os questionamentos.O deputado petista afirmou que o tema é de responsabilidade do Executivo e que, portanto, cabe ao governador tratar do assunto. “A única coisa que a gente tem é o voto [como parlamentar]”, disse.Conforme Reis, se um projeto for enviado à Alesp, ele votaria a favor, considerando que há uma “injustiça dupla”, nos casos em que um policial inocente é acusado e exonerado do cargo.Já o Delegado Olim afirmou que os policiais, sobretudo os civis, somente não retornam à corporação quando perdem os prazos dos recursos. “Pode demorar, mas eles retornam e o governo paga todos os [salários] atrasados”, disse. Segundo o parlamentar, “até o Tarcísio chegar, sempre foi assim”.O deputado também atribuiu a responsabilidade ao agente que “não está com a documentação em ordem”, mas enfatizou que, mesmo complexa, existe a possibilidade de o policial retornar ao posto respeitando os prazos legais.Em março do ano passado, o deputado Capitão Telhada propôs ao governador Tarcísio de Freitas que a LC 915/2002 seja revogada. Ele justifica com base na “demissão em massa de policiais militares, os quais, ao longo do tempo, não tiveram oportunidade de sequer recorrer às instâncias superiores e valer seu mais amplo direito”.A proposição está em tramitação. Até o momento, não houve parecer do governador.O que diz o governoQuestionada sobre o tema, a SSP afirmou que “os processos administrativos disciplinares instaurados pelas Polícias Civil e Militar seguem rigorosamente os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, como a legalidade, a impessoalidade e o interesse público”.A pasta destacou que a responsabilização administrativa é autônoma e independente da responsabilização penal, o que significa que um servidor pode ser absolvido na esfera criminal e ainda assim ser responsabilizado administrativamente, “caso sua conduta infrinja os valores, deveres funcionais ou preceitos éticos exigidos pela carreira policial”.Da mesma forma, é possível que um servidor seja condenado na esfera penal e não sofra, necessariamente, sanções disciplinares, a depender da natureza e das circunstâncias do fato, apontou a SSP.Em nota, a secretaria destacou que a legislação vigente prevê, de forma expressa, que a reintegração de servidores excluídos só é obrigatória quando a absolvição na esfera criminal ocorrer com base na negativa de autoria ou na inexistência do fato (conforme prevê o artigo 386 do Código de Processo Penal).“Fora dessas hipóteses, a decisão penal não vincula a Administração, que deve reavaliar o mérito da conduta administrativa com base na legislação funcional, nos princípios institucionais e no interesse público”, diz o texto.A SSP também se posicionou sobre os casos dos ex-policiais mencionados na matéria. No caso de Souza, a pasta afirmou que “ainda que o processo penal tenha sido resolvido por meio de acordo de não persecução penal, tal resolução não configura absolvição judicial com fundamento em negativa de autoria ou inexistência do fato — requisitos indispensáveis para eventual reintegração automática”.De acordo com a pasta, a conduta do ex-policial civil foi reavaliada sob a ótica administrativa, resultando na manutenção da penalidade.Já com relação ao ex-PM Marcos Francisco, a SSP afirma que a exclusão ocorreu após regular processo administrativo disciplinar, “instaurado em razão de condutas incompatíveis com os preceitos ético-disciplinares da corporação”.A pasta diz ainda que retorno de militares à ativa, após exclusão, “está condicionado aos critérios legais, não havendo distinção institucional entre oficiais e praças nesse aspecto”.“A Secretaria reitera que permanece aberta ao diálogo com todas as entidades representativas da classe policial e reafirma seu compromisso com a valorização dos profissionais da segurança pública e com a estrita observância da legalidade”, finalizou a nota.O Metrópoles também procurou o governo do estado, solicitando um posicionamento de Tarcísio, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.