A profecia do Frei Vicente de Salvador (por Gustavo Krause )

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Quando assumi a Secretaria da Fazenda de Pernambuco, ainda não entrara na casa dos trinta anos. Logo, tão tinha como obedecer ao impaciente chamado de Nelson Rodrigues: “Envelhecei, antes dos quarenta somos todos cretinos fundamentais!”. Só o tempo cura a doença juvenil e, com todo respeito ao mestre Nelson, existem cretinos e idiotas em todas as idadesO notável escritor pernambucano, polêmico na essência, não deixava por menos certas questões que hoje estariam fulminadas pela artilharia do politicamente correto. Procurei suprir minhas graves deficiências ouvindo os mais experientes, uma prática que jamais abandonei. Aliás, saber ouvir ou sapere aude originalmente, um lema latino (Horácio) que atravessou o iluminismo kantiano e entre significados variados, me ordenou: “atreva-se a conhecer”.Pois bem, certa vez, recebi em audiência um deputado estadual, conhecido pelo pragmatismo e pela legitimidade de meia dúzia de mandatos. Fora amigo do meu pai o que, de plano, me sensibilizava. Ele se ajustava ao figurino que o jargão político denomina de “raposa felpuda”, sabidíssimo, porém, decente. Era um produto perfeito e acabado do “espírito do tempo”.Cumpridas as formalidades de praxe e resolvidas algumas pendências do Deputado junto à secretaria, neófito, puxei conversa, buscando entender o complexo mundo da política em ação. Ele não se fez de rogado, começando com um respeitoso “meu jovem” e prosseguiu: – Secretário, o senhor tem o cofre do governo na mão (nem tanto, nem tanto) e as tarefas de governar consistem em três ações básicas: governar é arrecadar e gastar, nomear e demitir; aos inimigos os rigores da lei e aos amigos os favores da lei; por fim, confirmar que manda quem pode e obedece quem tem juízo”.Dando a conversa por finda, o Deputado despediu-se com a sincera disposição de me aconselhar sempre que necessário. Passados meio século, a fórmula apresentada nada tem de anacrônica e escandalosa. Ela contém vícios seculares disfarçados na retórica que está na raiz do nosso regime democrático, a saber: “manda quem pode, obedece quem tem juízo” contamina o exercício do poder de autoritarismo e abre as possibilidades para ratificar e existência do “sabe com quem está falando”, resquício de uma sociedade com traços escravocratas expressivos.Por sua vez, “aos inimigos, os rigores da lei; aos amigos os favores da lei” é o solene enunciado da praga do clientelismo e do compadrio que se alastra sob várias formas, inclusive, a do nepotismo cada vez mais escancarado.Por fim, “governar é arrecadar e gastar; nomear e demitir” completa a conjugação dos verbos que nos remetem às origens da formação do estado patrimonialista e do estamento burocrático que representam um nefasto modelo de administração pública onde os interesses dos governantes e os recursos estatais são tratados como propriedade pessoal daqueles que exercem o poder.A propósito, esta promiscuidade foi percebida por Frei Vicente do Salvador (1564-1635) na sua obra História do Brasil, 1627, numa referência, desgraçadamente atual, pelo tom profético: “Nem um homem nesta terra é republico nem zela ou trata do bem comum senão cada um do bem particular”.Esta perversão da Política é agenda diária do noticiário brasileiro que expõe um grave conflito entre três os poderes, instituídos no artigo segundo da Constituição Federal: “São poderes da União, independentes e harmônicos, entre si, o Legislativo, O Executivo e o Judiciário”.Não parecem independentes quando eventuais invasões de competências ameaçam o equilíbrio; muito menos harmônicos no sentido de praticar o princípio para cooperação institucional e assegurar o equilíbrio entre os poderes. Há sempre uma crise de plantão o que compromete a estabilidade e a previsibilidade do ambiente político.O pano de fundo é o panorama da acirrada e polarizada disputa eleitoral. O lema é cada um por si, emendas para todos e um débil sussurro de vozes minoritárias em busca de soluções institucionais que protejam a situação econômica resistente, graças à musculatura do trabalhador e do empresário que trabalham e produzem a despeito de um estado ineficiente e esbanjador.Por sua vez, o notável arranjo institucional proposto pela Teoria da Separação dos Poderes que nos foi legada pelo filósofo, escritor, historiador e aristocrata, o Barão de Montesquieu, reflete a força e a fragilidade da virtude – somente poder freia poder – o esteio do sistema republicano.Em consequência, o mal, senão incurável, porém persistente, é o patrimonialismo – a prevalência do interesse privado sobre o interesse público e o bem comum – que foi diagnosticado por Raimundo Faoro (1925-2003), na obra clássica, (Os Donos do Poder: a formação do patronato brasileiro, 4, Ed. Porto Alegre, Globo, 1977). “Os donos” assumem o formato de “estamento burocrático” e atuam nos espaços de poder de modo a conquistar e consolidar privilégios, institucionalmente reconhecidos. É uma construção diabólica que, por não ser classe, nem formar casta, está sempre habilitada a tirar o máximo proveito dos irmãos poderosos.Faoro não se alinhou a correntes ideológicas. Era, na essência um democrata. Com sólida formação jurídica, estudou e produziu obras de sociologia fora do ambiente acadêmico. Porém, apesar da originalidade, sua obra revela certa influência do grande pensador e sociólogo alemão Max Weber (1864-1920).Neste sentido, é oportuno mencionar Weber, especialmente no momento histórico que vivemos, em trecho que tem por base o estudo sobre o fenômeno sociológico da autoridade ao identificar no político que “começa quando esse desejo de poder deixa de ser objetivo para tornar-se uma auto-embriaguez puramente pessoal, ao invés de colocar-se exclusivamente a serviço da causa”.Em síntese, há dois pecados mortais na política: a falta de objetividade e a irresponsabilidade, ambos impulsionados pela vaidade, enfermidade ocupacional dos que vivem a experiência do exercício do poder.PS. No dia 05 de maio, neste espaço, em artigo de minha autoria, defini Trump como “O demolidor de instituições e candidato a Rei do Mundo”. Suas ambições não têm limites. Gustavo Krause foi ministro da Fazenda