Segunda-feira, 18h35, vagão lotado na linha vermelha. Subo. Um senhor carregando décadas de trabalho nas costas, visivelmente exausto, equilibrava-se com dificuldade enquanto nos assentos preferenciais, à frente, jovens engravatados com ternos justos e olheiras de LinkedIn fingiam dormir. Um deles roncava alto, exibindo uma performance digna de Oscar – talento artístico notável considerando que, segundos antes, falava animadamente ao telefone pregando “entregar resultado com propósito”.A compaixão, dizem os sábios, é a arte de reconhecer o sofrimento alheio e querer fazer algo. Conceito bacana, idealista, repetido em palestras com legendas motivacionais dignas de TED Talks, mas que nas metrópoles brasileiras prefere pegar o trânsito no contrafluxo ou descer na estação anterior.Não é por maldade, claro. Conviver em meio a milhões de almas requer certas adaptações evolutivas sofisticadas: desenvolvemos uma cegueira seletiva que nos permite não ver um morador de rua na esquina da Paulista (existem cerca de 96 mil, de acordo com a Rede Nossa São Paulo), mas identificar imediatamente uma vaga de estacionamento a vários metros de distância. A audição se especializou também: somos capazes de detectar o barulho de um food truck a duas quadras quando estamos com fome, mas nos tornamos curiosamente surdos aos pedidos de ajuda do tipo “moço, por favor”, ditos com voz de quem pede envergonhado por comida. Evolução social em ação.Commodity em extinção, essa disposição de ajudar diante da dor do outro exige tempo e é cada vez mais escassa. Sua existência procura por uma pausa, de um respiro longe do WhatsApp do chefe e da reunião que poderia ter sido um e-mail ou nem isso. Afinal, como perceber que a moça do caixa está tendo um dia difícil com uma fila de quinze indivíduos rosnando impacientemente atrás de nós?Há uma dança sutil entre sentir e agir, entre ser espelho e ser remédio. A empatia, essa prima dramática da compaixão, nos faz refletir a dor alheia até que ela se confunda com a própria melancolia metropolitana. Mas a compaixão é de outra estirpe – é a empatia que foi à academia emocional, desenvolveu músculos de ação e não se contenta em observar: quer enfaixar, curar, aliviar. É a diferença que separa assistir à tragédia social de camarote e descer ao palco buscando a mudança do roteiro.Navegamos numa espécie de modo avião, sintonizados numa frequência exclusiva ao atravessar avenidas e gentes com a mesma pressa. Cada rosto em nosso caminho vira paisagem, elemento do cenário urbano como os outdoors, os semáforos e aquela eterna obra na marginal que ninguém mais questiona. Sozinhos, agimos de forma decente: damos roupas no Natal, ajudamos o vizinho a carregar as compras, gostamos de vídeos de golden retrievers resgatados, choramos com histórias de superação no Instagram. Mas, no espaço público, qualquer gesto solidário se esconde, constrange-se, finge que não viu e sai de fininho pela porta dos fundos.Sentir demais congestiona, maltrata o coração. Agir demais esgota física e mentalmente. A cidade cansa, e ser humano nela exige esforço diário para não virar cinza e dela não ressurgir. No meio desse cansaço vem a ironia máxima: o Estado, aquele que trabalha em prol do cidadão mais vulnerável, resolve agir com jato d’água. Ao menos aqui em Sampa. Não raro, utilizam tropa de choque, escudo e spray de pimenta, expulsando quem não tem onde morar como se fosse entulho, atrapalhando o paisagismo das calçadas públicas. O espaço público fica limpo, dizem sem corar, mas o que limpam é a vergonha de todos aqueles que “fingem não ver”, evitando envolver-se. Siga o canal da Jovem Pan News e receba as principais notícias no seu WhatsApp! WhatsApp A assim, vez ou outra, a vontade de ajudar aparece: no aperto do metrô, alguém cede o lugar; na calçada, uma mão segura as sacolas da mulher que se atrapalha; o porteiro recebe um “obrigado” acompanhado de um copo d’água em dia de calor sufocante. Não muda o mundo, mas salva um pedacinho dele. No final, talvez a compaixão urbana não seja sobre grandes gestos heroicos ou institucionais, mas sobre esses momentos mínimos em que conseguimos ver além do asfalto e perceber que, por baixo de toda essa pressa, ainda somos pessoas tentando chegar em casa. Leia também A fome que o mapa não mostra