No Sol Nascente, que já foi a maior favela do Brasil, o fim da manhã é marcado por um cheiro familiar que se espalha pelas ruas. Alho e cebola refogados anunciam que está começando o preparo do almoço na Unidade de Desenvolvimento Social e Humano da região administrativa do Distrito Federal.À frente das panelas está Valdineia da Conceição Rodrigues, mãe e voluntária. Ela organiza a fila, dá ordens rápidas, prova o tempero. Mais do que cozinheira, é guardiã de uma rotina que mata a fome, mas também devolve dignidade.“A única coisa que alimenta mesmo é a comida de verdade. O pacote ultraprocessado só engana a fome por um tempo — não suja a panela, não passa pelo ralo. O que alimenta é o prato preparado com cuidado”, afirma, com a firmeza de quem sabe o que significa chegar em casa e não ter o que servir.Comida, afeto e cidadaniaA cozinha do Sol Nascente é feita de redes, a comida vem do Banco de Alimentos, vem de restaurantes parceiros, vem de vizinhos que compartilham o que têm.Valdineia aprendeu cedo a transformar pouco em muito. “Comer bem é direito, não luxo”, repete enquanto distribui colheradas de caldo fumegante.Cada prato servido ali vai além da nutrição. É afeto, é conversa, é cidadania. Quem passa pela cozinha não encontra só comida, mas também informação sobre cursos, acesso a programas sociais, espaço de acolhimento. É o lugar onde política pública e comunidade se encontram e viram prática.No Sol Nascente, a infância também carrega aprendizados de resistênciaQuem observa o movimento de perto é Luana Santana Araújo, moradora do Sol Nascente e mãe solo de três filhos. A história dela carrega as marcas da fome: noites em claro pensando no que oferecer às crianças, dias em que o café da manhã não passava de água com açúcar.“Eu já passei fome com meus três filhos, e foi graças ao Bolsa Família que tive um alívio e pude pensar, de novo, no que é comer de verdade”, conta.Hoje, ela vê nas cozinhas solidárias uma rede de apoio que muda a rotina. “A fome é um desespero, mas quando a gente encontra uma cozinha solidária, dá para ver luz.”Onde política pública vira vida realHistórias como a de Valdineia e Luana mostram a força da Estratégia Alimenta Cidades, que em 2024 habilitou 410 cozinhas solidárias em todo o país, muitas delas em territórios como o Sol Nascente, onde a insegurança alimentar atinge muitas famílias.Essas cozinhas fazem parte de uma rede maior: compras públicas de alimentos da agricultura familiar, bancos de alimentos e hortas urbanas. É assim que a comida chega à panela de Valdineia — sem desperdício, com mais justiça e fortalecendo produtores locais. Ver essa foto no Instagram Uma publicação compartilhada por Ministério do Desenvolvimento Social – MDS (@mdsgovbr)A poucos quarteirões da cozinha, uma horta comunitária resiste entre as casas de tijolo cru e ruas de terra. Filas de couve, cheiro de tempero fresco, tomates amadurecendo no pé. Crianças aprendem ali que alimento nasce da terra, e não de uma embalagem.Desde 2018, foram implantadas 231 hortas urbanas no Brasil, muitas delas em bairros periféricos como o Sol Nascente. Elas garantem acesso a alimentos frescos, geram renda e fortalecem a comunidade.Mulheres como força motrizValdineia sabe que não está sozinha. “Aqui tem restaurante que doa, vizinho que traz verdura, Banco de Alimentos que encosta com o que tiver. A gente faz render”, ressalta, orgulhosa da força coletiva.Mulheres como ela são protagonistas na luta contra a fome: organizam cozinhas, mobilizam vizinhos, cuidam da família e, ao mesmo tempo, mantêm viva a política pública no chão da favela.Entre panelas e hortaliças, voluntária garante que a comunidade do Sol Nascente tenha acesso à comida de verdadeComer bem é direitoNo fim do dia, a cozinha solidária fecha as portas, mas deixa rastros de esperança. Luana sai com os filhos de barriga cheia e a certeza de que não está sozinha. Valdineia guarda as panelas, pronta para recomeçar no dia seguinte.No Sol Nascente, histórias como essas mostram que a luta contra a fome é coletiva e diária. O Brasil saiu do Mapa da Fome em 2024, mas a conquista só se sustenta quando vira realidade em lugares como esse.“Comida de verdade precisa de tempo, de gente e de política”, resume Valdineia. E é nessa mistura de panela, afeto e Estado que se cozinha um futuro mais justo.