Há um medo antigo que, embora percorra vários setores, é nos corredores do setor jurídico que mais se tem feito sentir recentemente. Adaptado aos tempos, é semelhante ao que pairava sobre as fábricas têxteis no século XIX, quando os Luditas destruíam teares mecânicos, não por ódio à tecnologia, mas por pânico da obsolescência. A máquina roubava-lhes, assim, o salário e também a dignidade do ofício. Hoje, a história repete-se em silêncio. Não há martelos a partir máquinas, apenas um cursor a piscar, enquanto a IA digere, em segundos, o que juristas levariam semanas a processar. Simplifica, sem dúvida, mas deixa a nu questões que, embora antecipadas por Susskind em Tomorrow’s Lawyers: An Introduction to Your Future, a profissão tem evitado: se o conhecimento jurídico se torna num resultado imediato, o que resta? Se a máquina dá a resposta, quem serão os juristas senão meros espectadores? Talvez a resposta resida num regresso a Kant. A máquina consegue processar, a velocidades alucinantes, quantidades sobre-humanas de leis e acórdãos. Contudo, falta-lhe, pelo menos por enquanto, a sensibilidade: a capacidade de experienciar o mundo e não apenas processá-lo. Recuperando a máxima da Crítica da Razão Pura, de que «pensamentos sem conteúdo são vazios e intuições sem conceitos são cegas», encontramos a chave.Sem intuição humana para ancorar a lógica ao caso concreto, a resposta da máquina é vazia. O papel do humano passa a ser dar-lhe vida e iluminar o seu sentido. A tensão entre experiência e progresso tecnológico Imaginemos um cenário, já não de ficção científica, mas de amanhã de manhã, onde a execução técnica está automatizada, desde a pesquisa de jurisprudência à redação da primeira versão de um contrato. Surgem então provocações inevitáveis. Se um advogado júnior, equipado com IA, acede à mesma informação e produz trabalho com velocidade e rigor técnico semelhantes aos de um advogado sénior, o que os distingue, além dos honorários? Ter-se-á perdido o valor da experiência? Perante esta vertigem, o instinto de autopreservação da profissão grita um ‘não’ imediato, quase indignado. Recusa aceitar que a sabedoria seja comprimível em código. E com razão. A IA não elimina a diferença entre júnior e sénior, arranca-lhe o véu. A verdadeira mestria, agora exposta, sempre foi navegar a dúvida com clareza: ver nitidamente quando a lei é clara mas a realidade turva, ou – prova suprema – quando a lei é turva mas todos a assumem cristalina. O fim da pedagogia da exaustão Isto leva-nos a reavaliar a formação. Com as devidas exceções, a advocacia viveu, durante décadas, sob uma pedagogia da exaustão. Acreditava-se que a intuição jurídica era forjada na repetição, nas madrugadas a rever vírgulas, no gesto de folhear e anotar códigos, rituais que a tecnologia ameaça tornar obsoletos. A premissa, ainda que inconsciente, era sempre a mesma: não há mestria sem labor. Mas será isto pedagogia ou apenas inércia? Será que carregar pedras ensina, de facto, a desenhar catedrais? Não é simples. A revolução que a IA traz é estrutural. Ao eliminar a carga mecânica do dia a dia, permite que o ofício se possa começar a aprender, desde logo, nas salas de decisão, onde se discutem as zonas cinzentas, se definem estratégias e se gerem os medos do cliente. A tecnologia não irá eliminar a formação, irá acelerá-la brutalmente e, com isso, também simplificá-la. Para aqueles cuja aprendizagem dependia da osmose pela demora ou da fricção dos processos manuais, a adaptação será dura. Porém, quer para os visionários que já antecipavam a mudança, mesmo sem saberem, quer para os que a abraçarem de imediato, o tempo ganho converter-se-á em maturidade estratégica. Esta transformação desencadeará também uma mudança económica profunda. Durante décadas, as grandes sociedades funcionaram como pirâmides: bases largas de juniores encarregues da execução intensiva e minuciosa, permitindo ao topo capitalizar a revisão e estratégia finais a valores premium. A tecnologia abala essa lógica. Agora, um único advogado, apoiado por IA, entrega o que antes exigia uma equipa de dez, deslocando inteiramente o valor da capacidade de mobilizar exércitos para aquilo que sempre foi mais escasso: a clareza do conselho, a proximidade da relação e a segurança da decisão. A advocacia não encolhe; purifica-se, simplifica-se e torna-se, enfim, no que sempre prometeu: uma prática definida não pelo volume do esforço, mas pela qualidade do julgamento. A pergunta como arte final No final do dia, o que resta ao humano? Resta o mais difícil: a coragem de decidir no escuro. A máquina pode varrer toda a jurisprudência e legislação do mundo para nos dizer o que é, mas continua a depender da sensibilidade humana para compreender o que deve ser. Para pesar a dúvida razoável, sentir a nuance ética de um acordo ou interpretar a tensão numa sala. A ironia suprema desta revolução é que nos devolve à base da filosofia. O advogado competente sempre procurou a resposta correta; o de excelência, agora munido de IA, define-se pela capacidade de fazer a pergunta certa. A arte clássica da retórica vê-se complementada por competências que, até ontem, pareceriam estranhas aos cânones jurídicos. O prompting – saber interrogar a máquina, definir o contexto e as baias, ou isolar a ambiguidade – torna-se o novo exercício de maiêutica, provando que a competência crítica nunca residiu no ato de obter respostas; esteve sempre na arte de saber as questões a colocar. Este artigo foi publicado na edição nº 32 da revista Líder, cujo tema é ‘Simplificar’. Subscreva a Revista Líder aqui.O conteúdo O advogado depois da máquina aparece primeiro em Revista Líder.