Eu lembro exatamente do momento em que caiu a ficha: eu precisava fazer algo pela regeneração. Logo depois de assistir um documentário sobre abelhas, me veio uma ideia tão forte que virou uma sensação corporal mesmo, como se alguém tivesse me chacoalhando sentada no sofá.Eu nunca fui técnica, não tinha ideias mirabolantes e, pra ser honesta, nem sabia plantar um muda direito. Mas eu senti mais do que um desejo, era uma missão.Meu lugar era conectando pessoas — aquelas com saberes que não se encontram no LinkedIn. Uma professora com uma agricultora. Um gestor público com uma sementeira indígena. Uma engenheira florestal com uma comunicadora periférica.Fazer pontes entre mundos que não se cruzam normalmente virou meu trabalho.Vivi Noda durante encontro de jovens da Rede de Sementes do Xingu. Foto: Milene AlvesE talvez por isso eu sinta tanto incômodo quando vejo o tamanho do abismo entre o que dizemos e o que fazemos sobre o futuro do planeta. Hoje eu vim contar uma experiência, e quem sabe alguns de vocês podem concordar comigo ou até mesmo nos conectarmos. Leia também: 1.Rádio dos Povos leva vozes indígenas e quilombolas à COP30 2.COP30 lança círculos de liderança para impulsionar ações climáticas Menos de 1%: o orçamento que não fechaEnquanto o Brasil se prepara para receber a COP30 em Belém, prometendo ao mundo liderar a regeneração da floresta e da economia, os números mostram outra realidade. Segundo levantamento publicado pela Folha de S.Paulo, menos de 1% das emendas parlamentares federais na última década foram destinadas à área ambiental. De um total de R$ 298 bilhões, apenas R$ 520 milhões chegaram ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Isso significa 0,17% do orçamento nacional, é zero virgula, mesmo, um número que, por si só, já revela o quanto a natureza ainda é tratada como coadjuvante nas prioridades políticas.E o dado não é isolado. O MapBiomas mostra que, nos últimos 40 anos, a Amazônia perdeu uma área equivalente à França. O Cerrado segue sendo o bioma mais desmatado, com mais de 650 mil hectares de vegetação nativa perdidos em 2024. A Caatinga já perdeu 14% de sua cobertura original. E a Mata Atlântica, nem preciso falar, né?Esses números não são só estatísticas. Eles são um diagnóstico de falta integração, continuidade e vontade política.Rebanho de gado nelore na Fazenda Carpa Serrana, em Barra do Garças, em Mato Grosso. Foto: André DibEu sei que são dados ruins, mas eu quis dar um contexto primeiro para deixar claro que a missão não é fácil, por mais que a palavra regeneração esteja cada vez mais no hype. Leia também: 1.Regeneração virou profissão, mas diplomas ainda não chegaram 2.O que é regeneração? Regeneração não é um setor: é uma forma de governar, é uma forma de ver o mundo.Trabalhar com regeneração me fez entender que ela não cabe em uma única pasta ministerial. Regenerar é repensar sistemas de produção, de alimentação, de transporte, de educação.E enquanto o orçamento ambiental for tratado como uma “caixinha verde” isolada do restante da máquina pública, vamos continuar enxugando gelo.Não adianta destinar 0,17% para o Ministério do Meio Ambiente se os Ministérios das Cidades, da Agricultura, da Saúde e da Educação não forem regenerativos também. Porque o impacto real acontece nas intersecções, e não nas fronteiras entre secretarias.A regeneração começa quando um programa de alimentação escolar se conecta a agricultores locais. Quando um projeto de compostagem urbana vira lei municipal. Ou quando uma rede de sementes nativas é vista não só como iniciativa socioambiental, mas como política de desenvolvimento regional. E agora sim, eu vim trazer uma notícia boa: A Semana de Inovação e o poder das conexões!Viviane Noda e Kamila Camilo. Foto: Arquivo PessoalFoi com esse olhar que aceitei o desafio de fazer a curadoria da programação “Novos Paradigmas para Regeneração e Resiliência” da Semana de Inovação 2025 da ENAP, o maior evento de inovação do setor público brasileiro. Sim, um evento do setor público colocando o tema urgente como principal pauta.Mais de 10 mil pessoas entre servidores, estudantes, empreendedores, ativistas e representantes de governos se reuniram em Brasília para discutir o futuro das políticas públicas. E faltando poucos dias para a COP30, a pergunta que guiou minha curadoria foi: Como o setor público pode impulsionar a regeneração dos territórios brasileiros?Eu quis mostrar que regenerar não é um sonho distante, é uma estratégia concreta que já está sendo testada e aprimorada em diferentes cantos do país. Por isso, desenhei uma programação que cruzasse biomas, saberes e linguagens.Cada painel foi pensado como uma semente. Cada convidada, como um elo. Vim trazer pra você um pouco do que aconteceu por lá: a força das sementes e das mulheres que as guardam.Milene Alves da Rede de Sementes do Xingu. Foto: Jully KathleenA primeira atividade foi com Milene Alves, bióloga e coletora da Rede de Sementes do Xingu. Ela começou contando que foi através da rede que sua mãe conseguiu comprar a casa própria. Hoje, Milene, o marido e os filhos vivem exclusivamente do trabalho com sementes nativas.A Rede de Sementes do Xingu já ajudou a restaurar 10.800 hectares de florestas e distribuiu R$ 8,5 milhões em renda para mais de 700 coletores e coletoras, em sua maioria, mulheres e indígenas. A fala de Milene foi um lembrete de que regenerar também é sobre independência econômica, dignidade e cultura viva, e como o próprio nome já diz: REDE. Leia também: 1.Xingu na mídia: quando o hype encontra a regeneração 2.Filme retrata trabalho das mulheres Yarang para reflorestar o Xingu Enquanto o orçamento nacional ignora a natureza, comunidades inteiras estão criando modelos de bioeconomia real sem precisar esperar por uma política pública que as reconheça. Mas como seria bom e melhor se reconhecesse, né?Compostagem: o lixo que ensina políticaLogo depois, o painel “Lixo é erro de design: como a compostagem está regenerando territórios”, mediado pela jornalista Cileia Menezes, mostrou que o que chamamos de lixo revela nossas prioridades e que compostar é um ato político.Arthur Rancatti, educador socioambiental, comunicador e um dos organizadores da Semana Lixo Zero Joinville, trouxe a visão estratégica: a compostagem conecta agendas ambientais, sociais e econômicas. Ele mostrou como o tema está chegando a ONGs, coletivos, escolas, empresas e ao setor público, mas ainda precisa ocupar com força os espaços de decisão.Palestrantes do painel sobre compostagem, na Semana de Inovação. Foto: Samela BorgesMarina Camargo, fundadora da Planta Feliz Adubo, compartilhou sua trajetória de 20 anos transformando resíduos orgânicos em adubo em São Paulo. Criou a primeira empresa de compostagem da cidade e hoje apoia outras a iniciarem em regiões onde o poder público ainda não atua. “Metade do resíduo das cidades é orgânico. Estamos falando de um trabalho regenerativo com potencial de renda, saúde do solo e cultura urbana.”Isabel, servidora da ALESC, trouxe um exemplo: a compostagem virou rotina na Assembleia Legislativa de SC, com separação de resíduos e formação de funcionários. “Não é só separar o lixo — é transformar o ambiente institucional e influenciar debates sobre políticas públicas”. Essa conversa deixou claro: a gestão de resíduos pode ser uma porta de entrada para regenerar o cotidiano — do lar à legislação.E a compostagem vai adubar o que? Floresta e comida! Leia também: 1.Compostagem passa a ser obrigatória em Nova York 2.O que é compostagem? Da floresta à mesa: quando o alimento vira política de justiça climáticaSe no painel anterior discutimos como o lixo é um erro de design, aqui a conversa girou em torno de um outro erro estrutural: o sistema alimentar. E, assim como os resíduos orgânicos podem voltar à terra em forma de adubo, o alimento também pode ser o ponto de partida para regenerar vínculos — com o território, com a cultura e com a justiça social.Claudia Visoni, Mariana Costa e Bruna Crioula falam sobre sistemas alimentares regenerativos. Foto: Humberto AraujoO painel “Da floresta à mesa: sistemas alimentares regenerativos”, mediado pela Mariana Costa, reuniu duas vozes que vivem essa transição todos os dias: Claudia Visoni e Bruna Crioula.Claudia, jornalista e uma das criadoras da Horta das Corujas, contou como programas de agricultura urbana, mesmo os mais reconhecidos, só funcionam graças à dedicação de servidores públicos que muitas vezes improvisam para manter os projetos vivos.“Todas as experiências que funcionam em agricultura urbana, no Brasil e fora, só funcionam porque tem servidor público que veste a camisa e samba conforme a música”, revela. Leia também: 1.Zeca Pagodinho doa terreno de 8 mil m² para horta comunitária 2.Horta comunitária alimenta famílias da Brasilândia Bruna Crioula trouxe a cozinha como lugar de resistência e de reconexão. Compartilhou a potência dos saberes culinários ancestrais como tecnologia regenerativa, afetiva e política: “A comida é onde tudo começa. Quando a gente fala de fome, a gente tá falando de terra, de cultura, de pertencimento. A cozinha é um lugar de luta e de cura”.E quem selou o painel com uma frase que reverbera até hoje foi Mariana: “O prato é o documento mais político que a gente assina todos os dias”.Mais do que falar de PNAE, PAA ou compras públicas, a mesa mostrou que alimentar é um ato profundamente político. E que, assim como a compostagem, a comida também precisa de ciclos completos onde quem planta, cozinha, come e destina os resíduos orgânicos para a compostagem estejam conectados, e o Estado entre como catalisador da transformação.Comunicação regenerativa: o poder de contar outra históriaTodos esses temas são muito mais visíveis quando há comunicação acessível para quem Por isso, abrimos espaço para a oficina de Comunicação Regenerativa, que facilitei ao lado da Gabriela Marcondes (@sustentavel.napratica).Foi uma experiência viva: ali mesmo demos uma aula sobre como pesquisar, criar roteiro, gravar, editar e criar posts e vídeos sobre o que estavam aprendendo na própria Semana de Inovação. Em duas horas, os conteúdos foram publicados no Instagram do evento, espalhando mensagens de esperança, provocação e propósito. li ficou claro que não basta fazer, é preciso comunicar de forma viva, autêntica e acessível.A comunicação regenerativa é o fio que costura as ações em rede e transforma iniciativas isoladas em movimentos coletivos. Mas peraí, todo mundo tem acesso às informações de forma igualitária? Não.gabriela Marcondes fala de Sustentabilidade de forma acessível. Foto: Instagram @sustentavel.napraticaJustiça climática e esperançaConvidei uma das maiores referências do Brasil, Kamila Camilo, ativista e pesquisadora, para uma palestra que trouxe um olhar provocador sobre justiça climática e economia regenerativa.Ela lembrou que já ultrapassamos cinco dos sete limites planetários, mas também que a humanidade conseguiu regenerar a camada de ozônio, um exemplo de cooperação global bem-sucedida. “Não se trata de parar de viver, mas de viver de um jeito que a vida caiba no planeta”.Sabe o que une todos esses termos, pessoas, técnicas e soluções? A natureza.Kamilla Camilo. Foto: Victor JägerSoluções Baseadas na Natureza: repensar a cidadeAtravés da EcoUniversidade, tive a oportunidade de subir no palco ao lado de mulheres que admiro vestindo o chapéu de aprendiz e ao mesmo tempo de educadora, esse era o momento de facilitar o entendimento a quem nos assistia.O painel era sobre “Soluções Baseadas na Natureza e Bioeconomia no Brasil”, e com microfone na mão, conversei com Maria Gabriela Podcameni (MMA), Ana Silva Oliveira (GIZ) e Claudia Visoni sobre a urgência de integrar natureza e infraestrutura. Falamos de jardins de chuva, wetlands urbanos, biomimética e bioeconomia comunitária. Mas o que mais marcou foi a constatação de que o maior desafio não é técnico, é cultural.“Vivemos numa sociedade naturofóbica e tecnólatra. Varremos as folhas do chão — que são fertilidade — e toleramos garrafas PET, que são poluição”, resumiu Cláudia.A gente não sabia se ria ou se chorava, mas melhor encarar a realidade do que ignorá-la, né? Regenerar cidades é reaprender a enxergar o que já é natureza, e permitir que a política pública atue como aliada dos ecossistemas, não como obstáculo.Soluções Baseadas na Natureza por Viviane Noda, Ana Luisa Silva, Claudia Visoni e Gabriela Podcameni. Foto: Jully KathleenO que a Semana de Inovação ensina para a COP30?O que vivi em Brasília me fez relembrar que a regeneração é um verbo coletivo. A Semana de Inovação foi um laboratório vivo do que a COP30 poderia ser: uma teia de conexões entre governos, comunidades e empresas, baseada em escuta, colaboração e propósito comum.Cada painel mostrou um pedacinho do futuro que o Brasil pode liderar:Sementes como política de renda e conservação.Compostagem como ferramenta de economia circular.Alimentação como política de bem-estar e equidade.Comunicação como mobilização social.Natureza como infraestrutura pública.Essa é a nova economia da regeneração, e o Brasil tem todas as condições de liderá-la, desde que o discurso venha acompanhado de orçamento, de continuidade e de coragem política.Ser protagonista climática em 2025 Ser protagonista climática não é ter crachá da ONU, e sim a capacidade de conectar mundos. É quando um servidor público descobre que uma horta pode ser mais transformadora do que produção de comida. É quando um plano de desenvolvimento nacional se torna transversal perante os ministérios.Não se trata de esperar soluções de cima, mas de construir pontes horizontais: entre pessoas, saberes e biomas.A COP30 em Belém será uma oportunidade histórica de mostrar ao mundo que o Brasil sabe fazer isso como ninguém. Mas a regeneração que importa não é a que aparece nas fotos oficiais, é a que brota nos territórios, nas escolas, nas cozinhas, nas hortas e nas conversas entre pessoas que decidem criar algo juntas.Porque regenerar não é uma tendência, é uma urgência. E ela começa toda vez que alguém decide fazer conexão onde antes havia distância.Colunistas CicloVivo: Neste espaço, especialistas de diversas áreas compartilham opiniões e pontos de vista, que não necessariamente refletem o posicionamento do CicloVivo.The post Menos de 1%: o orçamento que não fecha appeared first on CicloVivo.