O último apagão de grandes proporções, que afetou quase 30 milhões de brasileiros em 25 estados e no Distrito Federal, deflagrou uma crise bilionária e jamais resolvida no setor elétrico.No dia 15 de agosto de 2023, houve desligamento súbito de uma linha de transmissão no Ceará (Quixadá-Fortaleza II) e uma sequência de falhas nos equipamentos que deveriam ter compensado automaticamente a queda de tensão.Aquele foi o “evento zero” do blecaute, mas pode-se dizer tranquilamente que o sistema elétrico nunca foi o mesmo. Desde então, todas as discussões relevantes no setor incluem um quase-palavrão para os desavisados: “curtailment”.Trata-se da resposta das autoridades a um paradoxo cada vez mais evidente em um parque gerador dominado por usinas eólicas e, principalmente, parques fotovoltaicos: o excesso de energia durante o dia.Em junho deste ano, a fonte solar já somava 58 mil MW (megawatts) de capacidade instalada e representava 23% de todo o parque gerador do país.São, acima de tudo, placas nos telhados de residências e escritórios comerciais. Ambientalmente, um golaço. Para a autonomia e os bolsos dos consumidores, um alívio. Para o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), um pesadelo.Tudo no sistema elétrico precisa estar em relativo equilíbrio. No racionamento de 2001, que enterrou a popularidade do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), havia mais demanda do que oferta. Naquele 15 de agosto de 2023, foi o primeiro sinal do grande problema de hoje: durante as manhãs e até depois do almoço, quando o sol está a pino, há muito mais oferta do que demanda.Dois grandes motivos estimularam esse desequilíbrio: crescimento desordenado na instalação de painéis fotovoltaicos (com fartura de subsídios) e demora em obras de transmissão para escoar a energia produzida em grandes fazendas solares.Para voltar ao equilíbrio e traumatizado com aquele blecaute iniciado no Nordeste, o ONS passou a fazer cortes obrigatórios de geração — o “curtailment”.A consultoria especializada Volt Robotics calcula que as perdas no setor elétrico com esses cortes já alcançam R$ 3,2 bilhões nos oito primeiros meses do ano.Só no mês de agosto, segundo a Volt, foi derrubada 36% da capacidade de geração solar e 21% da capacidade de geração eólica. Investidores pedem ressarcimento e a legislação tem uma lacuna sobre esse ponto.“A situação é insustentável e coloca em risco o segmento de geração renovável no Brasil”, afirmou a consultoria em um de seus últimos relatórios.Quando o governo editou a MP 1.300 — medida provisória que ampliava a tarifa social e propunha uma reforma do setor elétrico –, boa parte das emendas de deputados e senadores tratava justamente do “curtailment”.Diante da desarticulação política do governo, a MP foi votada apenas no último dia de sua vigência e precisou limitar-se ao que era consensual no Congresso: a tarifa social.Em entrevista recente à CNN, o CEO da CPFL Energia, Gustavo Estrella, deixou claro que uma solução para o “curtailment” definirá o montante de investimentos do grupo na área de geração nos próximos anos.“Temos hoje um pipeline de projetos de 4 GW (gigawatts) com graus diferentes de maturação, o que poderia dobrar a nossa capacidade de geração, a depender de como será o cenário do curtailment, que possibilitará ou não esses investimentos”, afirmou o executivo.Ao elaborar cenários sobre esse desequilíbrio, o ONS alertou em relatório de junho que o problema pode crescer ainda mais.O documento indicou que, até 2029, os cortes de geração poderão alcançar 40 mil MW em determinados momentos do dia, com restrição em 84% do tempo no intervalo entre 9h e 15h59. Esse volume de energia equivale a três vezes a produção da usina binacional de Itaipu.Há ainda um outro drama relacionado à expansão desorganizada da fonte solar. Quando chega o fim da tarde e há outro pico de consumo, com milhões de pessoas chegando às suas casas e ligando aparelhos domésticos, o perfil da geração de energia muda radicalmente porque as placas fotovoltaicas se tornam inúteis.Novas hidrelétricas e usinas térmicas, entretanto, têm saído do papel em ritmo cada vez mais lento. Desde o ano passado o Ministério de Minas e Energia tenta fazer um leilão de reserva de capacidade, com o objetivo de contratar mais geração firme (e não intermitente) para o sistema interligado, mas o certame já foi adiado seguidamente e não tem uma definição até agora.