Há objetos que ultrapassam a função de sua origem e se tornam símbolos culturais. Algumas peças no universo mobiliário carregam essa essência, um exemplo é a Peacock Chair (cadeira pavão, em tradução livre), a cadeira filipina de espaldar em leque que se firmou como um ícone de identidade e resistência cultural.Feita de rattan, uma fibra natural abundante nas florestas do sudeste asiático, a Peacock Chair nasceu no distrito de Parian, em Manila. Ali, entre o fim do século 19 e o início do 20, artesãos anônimos começaram a tecer o que seria mais do que um assento: uma narrativa de autonomia e beleza em meio à colonização espanhola e à dominação americana. Leia Mais Empreendedora aposta em arte indígena para gerar renda a povos originários As principais tendências de decoração para 2025 Feng shui no quarto: dicas para renovar a energia deste ambiente A cadeira que nasceu entre colôniasDe acordo com o designer, professor, pesquisador e diretor do Museu da Cadeira Brasileira (MuC), João Caixeta, a Peacock Chair surgiu no momento em que as Filipinas vivia uma transição histórica: o fim de mais de três séculos de colonização espanhola e o início da presença norte-americana, a partir de 1898. Nesse período, o país experimentava uma disputa simbólica intensa entre o que era imposto e o que era local.O epicentro desse processo foi o distrito de Parian, em Manila, conhecido pela produção artesanal de móveis e cestarias.“Enquanto os espanhóis introduziram o mobiliário de madeira pesada e estilos europeus, o período americano trouxe novas influências comerciais e uma valorização gradual dos materiais e técnicas locais. A Peacock Chair se destacou como uma peça que, embora se assemelhasse a uma cadeira europeia em sua função, era distintamente filipina em seu material, rattan, e em sua elaborada técnica artesanal”, explica.Criação coletiva e saber tradicionalSegundo Caixeta, ao contrário das cadeiras europeias, criadas por marceneiros reconhecidos, a Peacock Chair não tem assinatura. Ela nasceu do coletivo, de um ofício passado de geração em geração.“Não existe o registro de um só criador. A Peacock Chair é uma construção coletiva, resultado de gerações de saber manual”, afirma o pesquisador. “Como muitos objetos originários de povos tradicionais, ela não nasce de um gesto único, mas da prática compartilhada.”Essa ausência de autoria individual reflete um modo de criar que é profundamente comunitário. Os artesãos de Parian, muitos deles descendentes de chineses, teciam o rattan não apenas como material de trabalho, mas como expressão de identidade. Cada cadeira era diferente, um equilíbrio entre técnica e intuição.Rattan e identidadeO uso do rattan é o que dá à Peacock Chair sua personalidade. A fibra, extraída de trepadeiras tropicais, é maleável, durável e renovável. Seu manejo exige tempo e habilidade, primeiro a colheita, depois o corte, o amolecimento com calor e, por fim, o trançado.“A identidade da cadeira está intrinsecamente ligada à habilidade manual dos tecelões filipinos em criar padrões intrincados e a forma distintiva do encosto em leque, que exige um alto grau de precisão e paciência”, diz Caixeta.Enquanto a marcenaria europeia celebrava a rigidez e a geometria, o design filipino se construía na flexibilidade e na organicidade. O resultado era uma peça que representava, ao mesmo tempo, natureza e cultura, força e leveza, tradição e modernidade.Simbologia do lequeO espaldar em forma de leque é o detalhe que eternizou a Peacock Chair. De imediato, remete à cauda aberta de um pavão, símbolo de beleza e realeza em diversas culturas. Mas, segundo Caixeta, a leitura vai além da ornamentação.“O espaldar europeu é fálico, vertical, símbolo de autoridade masculina. A Peacock Chair rompe isso”, explica o professor. “O fato é que a forma arredondada no espaldar da Peacock Chair filipina trás uma possibilidade oposta de leitura, o universo feminino, arredondado, expresso em sua forma de abraço materno.”“E, se observarmos bem, em oposição ao significado de falo, arquétipo do espaldar da cadeira, teremos uma outra leitura, uma forma uterina que nos inspira proteção e aconchego. Nada melhor para o objeto cadeira e sua proposta de sua funcionalidade”, reforça Caixeta.Resistência e pós-colonialismoEm meio ao domínio colonial, a Peacock Chair foi uma afirmação da criatividade filipina. Enquanto o discurso oficial tentava impor valores europeus, o artesanato local encontrava meios de resistência estética.“A cadeira encarna a capacidade dos filipinos de manter e celebrar sua identidade em face de séculos de dominação”, explica Caixeta. “Ela representa a persistência das habilidades tradicionais e a utilização de materiais locais, um gesto de autonomia diante do estrangeiro.”Décadas depois, essa força simbólica ecoou fora das Filipinas. Nos anos 1960 e 1970, a cadeira se tornou um ícone global, aparecendo em retratos de personalidades e movimentos contraculturais. Um dos mais célebres foi o retrato de Huey P. Newton, líder dos Panteras Negras, empunhando uma lança e um rifle enquanto posava sentado numa Peacock Chair. De assento colonial, ela se tornou trono revolucionário.“No contexto pós-colonial, a cadeira assume um significado ainda mais profundo. Depois de séculos de colonização que tentaram suprimir a cultura ancestral em favor de modelos estrangeiros, a Peacok Chair emergiu como um ícone global de design que é inequivocamente filipino”, afirma Caixeta.Conheça a artista que transforma bolas de tênis em móveis