Como uma ex-república soviética, a Ucrânia ainda convive com problemáticas enraizadas na estrutura de seu estado. A busca pela ascensão à União Europeia, a tentativa de se tornar uma nação mais aberta economicamente e a vontade da juventude ucraniana de ter um país mais transparente ocasionou uma série de revoltas populares, um evento nacionalmente reconhecido como revolução e muitas mudanças efetivas no processo político interno. Mesmo tendo sido eleito em 2019, já no segundo ciclo eleitoral após a Euromaidan, Volodymyr Zelensky venceu com uma plataforma antiestablishment e que contou com a aversão dos ucranianos à classe política tradicional para derrotar o incumbente Petro Poroshenko. O ex-comediante e ex-ator prometeu levar a Ucrânia a altos voos rumo a um futuro europeu, mas acabou se tornando um presidente de tempos de guerra, algo que jamais imaginou que aconteceria.Durante os quase quatro anos do conflito territorial e ideológico contra a Rússia, a popularidade de Zelensky subiu e desceu de maneira constante, mas nunca sua desaprovação chegou a níveis alarmantes que pudessem contestar sua legitimidade. Com a invasão russa e a oficialização de lei marcial na Ucrânia, muitas das liberdades convencionais foram suspensas, incluindo o calendário eleitoral de 4 anos. Em maio de 2024, o mandato de Zelensky expirou, mas as circunstâncias anômalas de um período de guerra o mantêm no cargo até hoje. A constituição ucraniana proíbe a realização de eleições legislativas ou presidenciais em um período de guerra, utilizando como razão a necessidade de garantir continuidade ao governo e recursos para a defesa nacional, evitando interrupções de autoridade que possam desestabilizar o país. De fato, esse modelo adotado pela Ucrânia é seguido em grande parte do mundo democrático.Desde que reassumiu a Casa Branca, Donald Trump não poupou Zelensky de amplas críticas, sobretudo por sua permanência no cargo após o término previsto do mandato. Em uma ocasião, o mandatário norte-americano chegou até mesmo chamar o presidente ucraniano de ditador. As repetidas falas questionando a legitimidade do presidente ucraniano e a inclusão de novas eleições na Ucrânia como um dos pontos do plano de paz, demonstram que Trump vê em Zelensky um empecilho para resolver, a seu modo, a guerra no Leste Europeu. Do lado russo a retórica tem sido a mesma. Para o Kremlin as negociações não avançam porque Zelensky, além de ser uma figura irredutível em suas demandas, não teria legitimidade para representar uma nação em um período fora de seu mandato oficial. Na visão de Moscou, uma figura mais dócil e mais suscetível aos velhos modos de persuasão soviéticos, seria o ideal para dar o tema como resolvido e apenas comemorar os ganhos territoriais. Para Trump ou para Putin, uma mesa de tratativas sem Volodymyr Zelensky seria o cenário ideal para que cada um colhesse internamente os louros daquilo que prometeram fazer às suas respectivas populações.Ao longo de 2024, o presidente ucraniano e muitos especialistas em ciências políticas argumentaram que a logística de se realizar eleições em tempos de guerra acaba com a isonomia e justiça do processo. Mais de 6 milhões de ucranianos, sobretudo mulheres, estão fora do território nacional e geograficamente não teriam condições de votar. Além desses milhões, há outros quase 1 milhão de homens e mulheres mobilizados na linha de frente e em outros setores da máquina militar, atualmente em condições irrealistas de poder participar de forma segura do processo democrático. Há também as complexas questões territoriais, nas quais cidadãos considerados ucranianos, em um território internacionalmente reconhecido como ucraniano, vivem sob ocupação russa, e, portanto, não poderiam participar do pleito.Apesar de argumentos robustos e exemplos históricos plenos sobre as inúmeras adversidades de se conduzir eleições em meio a uma guerra generalizada, Estados Unidos e Rússia insistem na realização de um novo processo eleitoral o quanto antes. Zelensky, que outrora disse não ser possível realizar eleições em um país assolado por uma guerra, recentemente disse que não concorreria, e que estaria disposto a oficializar um pleito entre 60 e 90 dias, caso os ucranianos pudessem votar de maneira universal e segura. A resposta do presidente acaba por colocar Trump em uma posição desconfortável, já que obrigaria os norte-americanos ou países da Otan a garantir a segurança da Ucrânia para a realização de eleições, algo vetado pela Rússia e desencorajado pelo próprio Departamento de Guerra dos Estados Unidos. Em relação à réplica de Zelensky, não ouvimos comentários detalhados da Casa Branca até o momento.Outro fenômeno político que deve ser considerado por Trump e Putin e que já foi múltiplas vezes observado em seus respectivos países é o conceito de “rally around the flag”, na tradução literal “reunir-se em torno da bandeira”. Tal princípio diz que em um momento de ameaça existencial, como uma guerra de grandes dimensões, pessoas da sociedade civil com ideias distintas de mundo acabam relevando suas diferenças e dando suporte ao governo incumbente até que a ameaça seja sanada ou a guerra concluída. Franklin D. Roosevelt vivenciou isso enquanto conduziu os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, assim como George W. Bush viu um crescimento expressivo de sua popularidade após os ataques de 11 de setembro 2001. Na Rússia, Josef Stalin também observou um grande salto em seu culto à personalidade durante a Segunda Guerra, enquanto Vladimir Putin também é um líder muito popular atualmente. Siga o canal da Jovem Pan News e receba as principais notícias no seu WhatsApp! WhatsApp O que a história nos mostra e que para problemas complexos como divisões territoriais, definições etnolinguísticas e violações do direito internacional, não possuem soluções simples. Por mais que no mundo utópico dos impérios atômicos, eliminar uma figura indesejada politicamente seja a resposta mais simples, o fenômeno de reunir-se em torno da bandeira azul e amarela pode dar continuidade aos ideais de Zelensky, mesmo sem a sua presença permanente no palácio presidencial. 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