Malásia converte fazendas em data centers. E o Brasil?

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A Malásia tem convertido antigas fazendas de monocultura de palma em data centers. Google, Microsoft e Amazon já anunciaram projetos que junto aos demais somam 34 bilhões de dólares em investimentos no país. O governo de Kuala Lumpur estima atingir 81 data centers até 2035. O que o Brasil, o país do agronegócio, tem a aprender com esse movimento malaio?Essas fazendas são o início da cadeia produtiva do óleo de palma, ingrediente muito presente em alimentos industrializados, produtos de higiene e cosméticos. Se você ler o rótulo dos produtos que consumiu hoje, há grande chance de encontrá-lo citado. O famoso shampoo Palmolive tem em seu nome literalmente o óleo de palma. Do inglês, palm olive, azeite (ou óleo) de palma.Historicamente as big techs e outras gigantes da tecnologia têm preterido construir data centers próprios no Brasil, o país de maior mercado delas no hemisfério sul, e preferindo mercados muito menores como Chile e Uruguai. Nossa insegurança pública e jurídica tem afastado esses investimentos.A única exceção à regra tem sido a ByteDance, empresa dona do TikTok, que está construindo um data center no Ceará, mas isso não é um bom sinal. A empresa não exatamente preferiu investir no Brasil e sim o país foi a escolha que restou a ela. O TikTok foi expulso dos EUA ao ser obrigado a vender a sua operação por lá e espera sofrer sanções semelhantes na Europa.O único país com políticos que tenham boa interlocução com a empresa (e até se aconselham com ela) e que, ao mesmo tempo possuem conexão direta por fibra ótica com esses grandes mercados dos EUA e Europa é exatamente o Brasil. Daí a escolha do Ceará e não do Sudeste onde se encontra o maior mercado brasileiro e a maioria dos 154 data centers de computação genérica do país. O objetivo de atender o mercado nacional é secundário. O primário é o exterior através dos cabos submarinos.Um dos desafios que a dona do Tiktok terá que enfrentar é a intensa atividade de facções criminosas no setor de telecomunicações no mesmo município escolhido para seu data center. Em Caucaia, um provedor de Internet já teve que encerrar operações por não aceitar pagar tributos ao narcoestado e vários outros foram alvo de vandalismo com corte de cabos e apagões. Com orçamento anunciado em R$200 bilhões, não seria surpreendente que a empresa chinesa também seja pressionada a pagar esses tributos.Já te expliquei como o Brasil é carta fora do baralho na corrida dos data centers de IA em edição passada desta coluna. O motivo de eu destacar hoje essa notícia da Malásia é outro. Estamos diante de uma tímida conversão de áreas agricultáveis em data center. Como somos o país do agronegócio e da Internet, essa experiência malaia muito nos interessa.Com frequência vejo brasileiros manifestando alívio quando aponto essa repulsa dos data centers especializados em IA de nosso território. Como se tivéssemos desviado de uma bala, nos livrado de um problema. Essas pessoas aprenderam a repetir um discurso que na prática é uma escandalização seletiva. Enquanto o agronegócio representa desafios imediatos ao Brasil, esses data centers de IA são uma indústria que sequer existe por aqui.Trago dados de 2024 para te fazer algumas perguntas:Dos 1.242.079 hectares de desmatamento no ano passado, quantos foram causados pelo agronegócio e quantos por data centers?Dos 30,8 milhões de hectares queimados no ano, a maior parte no cerrado, quantos foram causados pelo agronegócio e quantos por data centers?Cerca de 90% do consumo de água do país é do agronegócio isoladamente. Qual é a porcentagem de consumo dos data centers?Dos 1.622 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão no ano, quantos eram do agronegócio e quantos eram trabalhadores de data centers?Quantos litros de agrotóxicos, pesticidas, defensivos agrícolas foram aplicados no ar, água e terra pelo agronegócio e quanto pelos data centers?Os data centers causaram nenhum desmatamento, nenhuma queimada, lançaram nenhum agrotóxico e nem submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão no Brasil no ano passado enquanto o agronegócio é o responsável quase integral dos números que eu trouxe acima.De fato, os data centers geram pouquíssimos postos de trabalho após sua construção, porém, criam uma demanda numa grande cadeia de suprimentos das quais temos fornecedores nacionais. Com o anúncio de que utilizará energia 100% renovável, o data center da ByteDance potencialmente movimentará pedidos nas 3 fabricantes brasileiras de geradores eólicos. Desde a  mineração brasileira provendo bauxita, fluorita e hematita e até a indústria nacional para transformá-las em dissipadores de calor, sistemas de refrigeração e racks para servidores fazem parte da cadeia produtiva indireta de um data center.Matrioska, um brinquedo russo.Temos uma matrioska de órgãos ambientais federais, estaduais e municipais em atividade. Os data centers sendo erguidos a olhos vistos nas periferias de nossos centros urbanos não escaparão da mão pesada da regulação e fiscalização. O empreendimento da ByteDance já está sob essa lupa. Muito diferente dos rincões do Brasil profundo onde a banda podre do agronegócio, longe das cidades e do estado, se sente despudorada para causar seu impacto ambiental.Com regras claras e confiáveis para o setor, a indústria de data centers pode ser convertida de geradora para solucionadora de problemas ambientais, como o financiamento de energia renovável para os demais setores ou até a conversão de esgoto em água de reuso para sistemas de refrigeração como prometido pelo governo cearense.Tratar data centers no Brasil como um problema ambiental é tão descolado do presente e do futuro próximo quanto tratar alienígenas como um problema de segurança pública. Talvez até sejam uma questão para o futuro, mas por agora, existem outros problemas maiores, reais e atuais para se combater. Ponhamos a bola no chão para atrairmos os investimentos em data centers no nosso melhor interesse social, ambiental e econômico.