Esperança para famílias com doenças genéticas raras pode nascer no laboratório

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Nos últimos anos, a medicina vem se transformando com descobertas que antes pareciam ficção científica. A mais recente, publicada na revista Science, traz esperança para famílias que convivem com o risco de transmitir doenças genéticas raras e graves. O estudo, que contou com a participação de um pesquisador brasileiro, desvenda um mecanismo celular envolvido na herança de mutações no DNA das mitocôndrias e abre caminho para o desenvolvimento de uma nova terapia medicamentosa.O que são mitocôndrias e por que isso importaAs mitocôndrias são pequenas estruturas dentro das nossas células responsáveis por gerar energia. Elas têm seu próprio DNA, diferente do DNA que herdamos do pai e da mãe. No caso das mitocôndrias, a herança vem exclusivamente da mãe. Quando há mutações nesse material genético, podem surgir doenças graves que afetam órgãos vitais, como cérebro, coração e músculos. Essas doenças, chamadas mitocondriais, são raras — atingem cerca de uma em cada oito mil pessoas —, mas têm grande impacto na vida dos pacientes e exigem cuidados intensos das famílias.Como o corpo tenta eliminar mitocôndrias com defeitoO estudo mostra que, no início do desenvolvimento embrionário, existe um processo natural de controle de qualidade que elimina mitocôndrias defeituosas. Esse processo, chamado mitofagia, depende da ação de uma proteína conhecida como ubiquitina, que marca as mitocôndrias alteradas para serem destruídas. Os pesquisadores descobriram, porém, que uma enzima chamada USP30 interfere nesse sistema, bloqueando a ação da ubiquitina e permitindo que mitocôndrias com defeito sejam preservadas. Isso ajuda a explicar por que certas mutações continuam sendo transmitidas mesmo quando o organismo tenta eliminá-las.A boa notícia é que essa descoberta também aponta para uma solução: ao inibir a ação da USP30 com uma substância específica (chamada Composto 39), os cientistas conseguiram reativar o mecanismo de eliminação das mitocôndrias alteradas em experimentos com embriões de camundongos. Em outras palavras, abriram uma janela de oportunidade para impedir que as mutações sejam transmitidas logo após a fecundação.Possível aplicação na reprodução assistidaNa prática, isso significa que, no futuro, poderá ser possível tratar embriões obtidos por fertilização in vitro para reduzir o risco de doenças hereditárias mitocondriais. É uma possibilidade ainda distante da aplicação clínica, mas com potencial transformador.Diferentemente da técnica de substituição de mitocôndrias, que envolve o uso de material genético de uma doadora e levanta debates éticos e regulatórios, essa abordagem com medicamento pode corrigir o problema sem alterar a herança genética da criança.Como médico geneticista, vejo essa descoberta como um passo fundamental rumo a uma medicina preventiva e personalizada. Entender como o corpo reage a mutações e como podemos intervir nesse processo nos aproxima da promessa de evitar doenças antes mesmo do nascimento. Mais do que uma inovação científica, esse tipo de pesquisa traz uma mensagem de esperança: a de que ciência e compaixão podem caminhar juntas para mudar o destino de famílias inteiras. Siga o canal da Jovem Pan News e receba as principais notícias no seu WhatsApp! WhatsApp Os avanços da genética nos convidam a refletir sobre o futuro da saúde reprodutiva. Precisamos discutir, de forma ética e responsável, como aplicar esses conhecimentos para garantir que o progresso científico beneficie a todos, sem ampliar desigualdades. O estudo publicado na Science lembra que cada descoberta é, ao mesmo tempo, uma conquista e um convite à responsabilidade. E que o verdadeiro papel da ciência é transformar conhecimento em qualidade de vida.Ciro Martinhago – CRM 102.030-SPMédico geneticistaEspecialista em doenças raras pela Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM) e PhDem genética reprodutiva.