Parou em frente ao prédio de Samantha e olhou o interfone, antes de mover o braço o porteiro disse “boa tarde”, Dênis sentiu um pânico na espinha e seguiu o passo. Faltou coragem. Um redemoinho de sentimentos, porém, obrigou Dênis a parar na esquina seguinte, uma encruzilhada tatuava seu peito. Recordou o depoimento do pai de Alice, mulher trans assassinada no Savassi em Belo Horizonte.“Será que uma transsexual não tem direto de viver em paz? Perdi uma grande parceira. É filho… A gente vai mudando o coração e aceitei: ela é uma mulher trans. Deixei de viver minha vida pra ficar com minha filha. Como ela ficou sem amigos, porque muita gente se afasta, eu parei de sair de casa para ficar com ela, para fazer companhia”, disse o pai.Dênis tinha se afastado de Samantha e a morte de Alice era um tapa na sua cara.Entre tantos aprendizados da primeira roda de conversa sobre masculinidade que participou, duas frases alugavam sua consciência. Estar nessa roda não te faz melhor do que ninguém. Não era um paladino contra o patriarcado, nem um desconstruído. Dênis era apenas um homem procurando paz em si e em suas relações. Era apenas um homem exausto e arrependido.A outra frase era “Não existe nada mais frágil que a masculinidade”. Uma camisa rosa, uma frase de duplo sentido, um respeito tímido pelas mulheres. Qualquer passo fora da ideia do macho ameaçava seu jeito de estar no mundo. Uma opressão social, um punhal em sua identidade, um julgamento que o condenava sendo ele mesmo polícia, júri e juiz. Nesses momentos sentia que era abduzido por essa masculinidade – uma força exterior o domava.Nunca fora próximo de seu primo Saulo. O motivo era óbvio: Saulo era gay. Frequentava sua casa porque o pai dele, o tio Nelson, era seu espelho de afeto masculino, um professor que ensinava pelas ações. Na casa de Dênis, o coração de seu pai era desabitado de carinho, as portas sempre fechadas, petrificadas por um aprendizado antigo que faz do afeto uma fraqueza, do abraço um abismo; oferecia um cardápio de palavras duras aos filhos, um dicionário de grosserias à mãe. Ninguém pode dar o que não tem, disse uma vez tio Nelson sobre o amor. Uma contradição fustigava Dênis. Tinha consciência dos horrores do pai, mesmo assim passou a vida reproduzindo-os em suas relações. Era insuportável e atormentava.Quando Saulo transicionou, Dênis se distanciou. Foi subjugado pela fragilidade. Silenciou frente a zoeira dos amigos,” é primo ou prima, hein”. As palavras decepavam sua calma. Não queria ser associado a Samantha. Não a entendia, não queria entender, a prima o ofendia, porque ela era assim, chegou a odiá-la para depois, no silêncio da noite, odiar-se. Era um covarde, não a defendeu uma vez sequer, covarde por abandonar seu tio, cúmplice de seu pai, cúmplice desse ódio homicida.Alice foi assassinada. Seu pai perdeu a filha trans. Essa dor atravessou Dênis. O prédio de Samantha estava logo ali. Tio Nelson estava ao seu lado. Tinha que fazer como o pai de Alice. Era hora de mudar o coração.