A estrutura da fábrica descoberta pela Polícia Federal (PF) em Santa Bárbara d’Oeste, no interior paulista, impressionou até investigadores experientes. Segundo laudos técnicos, o espaço — registrado oficialmente como empresa de peças aeroespaciais, mas usado para fabricar armamentos — tinha capacidade de produzir 3.500 fuzis por ano, o equivalente a dez armas por dia, se operasse em regime integral.O perito responsável pelo relatório técnico descreveu o local como uma “estrutura industrial com padrão de linha de montagem”.“A planta dispõe de centros de usinagem capazes de produção em série, com fluxo contínuo e trocas rápidas de ferramenta. O nível técnico é compatível com o de uma metalúrgica de precisão”, disse o engenheiro Gustavo Mendes de Azevedo, da PF. A investigação indica que parte dos armamentos fabricados no local eram vendidos para facções criminosas, entre elas o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro.8 imagensFechar modal.1 de 8Peças de armas eram projetadas e feitas clandestinamenteReprodução/PF2 de 8Armamento era montado em Bunker no interior de SPReprodução/PF3 de 8Ação conjunta da PF e PM apreendeu dezenas de fuzisReprodução/PF4 de 8Armamento era negociado com criminosos Reprodução/PF5 de 8Um dos supostos clientes do grupo seria o Comando VermelhoReprodução/PF6 de 8Supeitos com formação técnica trabalhavam para quadrilhaReprodução/PF7 de 8Dono de fábrica consta entre os investigadosReprodução/PF8 de 8Arte Alfredo Henrique/MetrópolesA fábrica por dentroO galpão onde funcionava a Kondor Fly, fachada usada pelo grupo, reunia centros de usinagem de Controle Numérico Computadorizado (CNC), tornos de alta precisão, fresadoras digitais e estações de acabamento. Leia também São Paulo Equipe de metalurgia do CV projetava e fabricava peças de fuzis em SP São Paulo Quadrilha que vendia fuzis para o CV também projetava pistolas Glock São Paulo Fuzis do CV: fábrica de fachada em SP tinha engenheiros e projetistas São Paulo Sócio de piloto arrendou “fábrica aeroespacial” para CV produzir fuzis Os peritos apontam que o arranjo das máquinas seguia o mesmo padrão de uma linha de produção industrial, com setores separados por função: corte, acabamento, montagem e embalagem.No estoque, a PF encontrou blocos de aço 4140 e alumínio 7075, os mesmos materiais usados na fabricação de fuzis e pistolas. Os insumos eram comprados em pequenas quantidades, em nome de terceiros, para não levantar suspeitas. “A aquisição fragmentada e a emissão de notas por diferentes CNPJs foram estratégias claras de ocultação do fluxo de materiais”, anotou o relatório policial.Linha de montagem dos fuzisDe acordo com as investigações, o processo de produção começava nos computadores de Anderson Custódio Gomes, o técnico apontado como o cérebro da operação. Usando softwares industriais como MasterCam e Fusion 360, ele criava os arquivos digitais com medidas exatas de canos, gatilhos e receptores de fuzis tipo AR-15. Os códigos eram transferidos para as máquinas CNC, que cortavam o metal automaticamente.Depois, Janderson Aparecido Ribeiro de Azevedo, operador de máquinas, ajustava as peças e testava os encaixes. “O Anderson pedia pra eu ver se a peça encaixava. Eu achava que era parte de drone. Nunca vi arma pronta”, disse em depoimento.As peças usinadas passavam por polimento e eram separadas em conjuntos prontos para montagem. No fim do turno noturno, tudo era embalado e levado para um depósito em Americana, de onde saíam os lotes vendidos sob encomenda.“Os registros telemáticos mostram padrão comercial: pedidos, confirmações e recebimentos. Não era produção artesanal, era uma linha de montagem completa”, concluiu o relatório de análise telemática obtido pela reportagem.Divisão de tarefas e disfarcesO documento da polícia apontou que, assim como um fábrica, cada integrante tinha uma função definida. Anderson Custódio Gomes era o programador e projetista das armas; Janderson Azevedo, o operador responsável pelos testes; Wendel dos Santos Bastos, o encarregado da logística e das compras; e Gabriel Carvalho Belchior, dono da fábrica, que permitia o uso do maquinário durante a noite.Belchior afirmou em depoimento que desconhecia a real finalidade da produção. “Eles disseram que iam testar peças aeronáuticas. Eu jamais imaginei que usavam minhas máquinas pra isso”, declarou.Notas fiscais obtidas pela PF, porém, mostram que a empresa dele comprava ferramentas específicas como microfresas e brocas de precisão, usadas em componentes de armas de fogo.10 imagensFechar modal.1 de 10Projetos eram posteriormente executados em fábrica no interior paulista Reprodução/PF2 de 10Armas eram projetadas em 3DReprodução/PF3 de 10Armas eram montadas no interior de SPReprodução/PF4 de 10Reprodução/PF5 de 10Armas eram repassadas para facções no Rio e nordeste Reprodução/PF6 de 10Peças eram feitas com maqunário de fábrica que deveria produzir peças aeroespaciaisReprodução/PF7 de 10Armas custavam entre R$ 8 mil e R$ 15 mil Reprodução/PF8 de 10Arte Alfredo Henrique/Metrópoles9 de 10Reprodução/PF10 de 10Reprodução/PFO delegado Jeferson Dessotti Cavalcante Di Schiavi, que coordena o inquérito, classificou o esquema como “a industrialização do crime”.“Havia planejamento, divisão de tarefas e fluxo de produção. Não era improviso, era uma indústria clandestina de armas”, afirmou.Engenharia reversa e padrão industrialOs peritos também constataram que o grupo dominava engenharia reversa, técnica usada para reproduzir equipamentos originais a partir de amostras. Com isso, conseguiram copiar dimensões de fuzis AR-15 e pistolas Glock sem precisar de plantas oficiais.“Não se trata de improviso artesanal, mas de engenharia reversa aplicada. A quadrilha dominava a tecnologia de produção de pistolas e fuzis, com padrão comparável ao industrial”, reforçou o perito Gustavo Azevedo, que assinou o laudo balístico e mecânico.Os relatórios apontam que o nível de precisão das peças apreendidas superava o de muitas oficinas legalizadas. Cada conjunto de receptor podia ser montado sem ajustes adicionais, algo incomum fora da indústria de defesa.Mercado e movimentaçãoMensagens de WhatsApp e planilhas bancárias indicam que as armas eram vendidas por valores entre R$ 12 mil e R$ 18 mil, dependendo do modelo e do acabamento. Pagamentos eram feitos via Pix e depósitos fracionados, enviados de estados como Rio de Janeiro e Goiás.Em um dos diálogos interceptados, Anderson escreveu a Wendel: “Esse aqui vai pro mesmo cara do RJ, fala pra ele que tá o mesmo valor do último, mas com rosca melhor”.A mensagem foi interpretada pela PF como negociação direta com um comprador ligado ao crime organizado.A dimensão do esquemaCom máquinas capazes de operar 24 horas, profissionais formados pelo Senai e estoque próprio de insumos, a estrutura de Santa Bárbara d’Oeste poderia abastecer o mercado ilegal com milhares de fuzis por ano. Para a PF e o Ministério Público, trata-se de um dos maiores casos de industrialização de armas clandestinas já detectados no país.“A capacidade instalada, o nível técnico e a organização indicam que o grupo atingiu estágio industrial. É a transformação de uma fábrica legítima em linha de montagem de guerra”, concluiu o delegado Di Schiavi em seu relatório.Quem é quem no esquemaAnderson Custódio Gomes — técnico em programação CNC, projetista dos fuzis e pistolas; preso.Janderson Aparecido Ribeiro de Azevedo — operador de máquinas, responsável pelos testes de encaixe; preso.Wendel dos Santos Bastos — intermediário e comprador de insumos metálicos; denunciado.Gabriel Carvalho Belchior — proprietário da fábrica Kondor Fly; responde em liberdade.“Milque” — gerente citado como supervisor das atividades noturnas; procurado.