Novo estudo revela 632 territórios quilombolas na Amazônia Legal

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A busca por mais reconhecimento a territórios quilombolas ganha força com a divulgação de um novo estudo que consolida, em um mapa mais preciso, a presença dessas comunidades na Amazônia Legal. Para representantes e especialistas, os dados oferecem um panorama inédito sobre populações tradicionais negras, seu papel na conservação ambiental e os entraves que persistem na titulação. “É uma afirmação da nossa existência, da nossa resistência, do nosso direito à terra”, resume Laura Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ela destaca que o levantamento é “uma ferramenta muito importante para garantir políticas públicas”.O estudo, conduzido pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Conaq e obtido com exclusividade pela InfoAmazonia, reúne diferentes bases de dados em uma única plataforma. Pela primeira vez, ele apresenta uma estimativa mais precisa do número de territórios: são 632 áreas delimitadas, frente às 166 listadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pela titulação — um aumento de 280%. O mapeamento localizou ainda 2.494 quilombos, comunidades representadas por pontos no mapa, ante os 2.179 identificados pelo Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).As informações foram coletadas ao longo de meses a partir de fontes como o Instituto de Terra do Pará (Interpa), o Instituto de Terra do Maranhão (Interma) e o próprio Incra. Territórios situados em florestas estaduais passam por trâmites nos órgãos locais; quando em áreas federais, ficam sob responsabilidade do Incra. O levantamento também incorporou dados da Fundação Cultural Palmares (FCP), que certifica a identidade quilombola, do IBGE e de organizações da sociedade civil, como as regionais da Conaq e a Malungu, Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará. Leia também: 1.Rádio dos Povos leva vozes indígenas e quilombolas à COP30 2.Projeto instala sistemas de reúso de água em comunidades quilombolas Segundo Antonio Oviedo, pesquisador do ISA que coordenou o estudo, a integração era urgente. Bases defasadas prejudicavam análises sobre saúde, invasões territoriais, desmatamento e estoques de carbono. “O problema era essa falta de transparência e de integração de dados, porque você tem informações sobre territórios quilombolas em diversas agências governamentais, e não há um lugar onde todas essas informações sejam organizadas. Isso dificultava muito ter uma visão mais integral sobre a dimensão quilombola”, afirma.A validação final ocorreu em oficinas e assembleias com quilombolas, que contribuíram com informações detalhadas. “Você precisava ver a felicidade das pessoas quando elas localizam as comunidades. Quando precisavam de uma informação, mandavam WhatsApp para alguém, a pessoa tirava o ponto de coordenada e mandava na hora para quem estava na oficina. Foi uma mobilização muito poderosa”, completa Oviedo.Quilombo urbano de São Benedito, em Manaus, Amazonas. Fotos: Bruno Kelly/InfoAmazoniaTerritórios protegem a florestaDados de cobertura e uso do solo do MapBiomas mostram que territórios quilombolas atuam como barreiras contra a degradação. Neles, 3.391.339 hectares de vegetação nativa seguem protegidos — 92,3% da área total mapeada. Os corpos d’água também apresentam alta preservação: 80.014 hectares mantidos, com taxa de 94,4%.A titulação é determinante: onde já ocorreu, a perda de cobertura florestal cai 60%. Territórios titulados mantém 91% de suas florestas; os não titulados, 76%. Segundo estudo recente da Conaq, a densidade de carbono nas florestas quilombolas é 48,7% maior do que no entorno; quando titulados, o aumento é de 12,4%.“Existe, sim, uma resiliência, uma capacidade de preservação e de proteção dos laços entre as comunidades negras rurais e quilombolas. Quando a gente olha para o bioma amazônico, pensa que só tem indígena. No entanto, 64% da população que vive na Amazônia é negra”, afirma Denildo Rodrigues de Moraes, o Biko Rodrigues, coordenador executivo da Conaq.Sete dos nove estados da Amazônia Legal possuem territórios identificados. Acre e Roraima ficam fora do registro oficial, embora a Conaq afirme haver quilombos no Acre. O estudo reforça que a base de dados não é definitiva e será atualizada com novas investigações.Maranhão, com 405 territórios, Pará, com 103, e Amapá, com 31, são os estados com maior concentração. No Maranhão, ocupam 16,4% do território estadual; no Pará, 39,8%; no Amapá, 4,1%. Os mesmos estados lideram no número de quilombos: 1.553 no Maranhão, 538 no Pará e 179 no Amapá. Leia também: 1.Mulheres se unem para levar água potável a comunidade quilombola 2.Bahia ganha sua primeira cerveja quilombola Como funciona a titulaçãoO processo começa com a certificação da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, que atesta a auto atribuição quilombola e confirma a identidade da comunidade por meio de estudo histórico, cultural e social. Dos 632 territórios, 344 são autodeclarados. Entre eles, 100 não têm certificação e 244 são autodeclarados com certificação da FCP. Entre os quilombos da Amazônia Legal, 49,1% — 1.224 de 1.270 — não foram certificados.Após a certificação, o Incra pode abrir o processo de titulação em terras federais ou particulares. A etapa exige a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que reúne relatório antropológico, levantamento fundiário, delimitação da área e cadastro de famílias.O documento passa por ao menos nove órgãos, como Iphan, SPU, Funai e ICMBio, que avaliam sobreposições com patrimônios, terras indígenas ou unidades de conservação. Se não houver contestações, o presidente do Incra publica a portaria de identificação e estabelece limites territoriais. Depois, ocorre a demarcação física e é emitido o documento final, que impede divisão, venda, loteamento, arrendamento ou penhora da terra. O território torna-se titulado e de usufruto quilombola.Apenas 160 dos 632 territórios foram titulados (25%). Amazonas e Mato Grosso não possuem nenhum território titulado. Dos 2.494 quilombos identificados, 52,3% estão dentro de territórios delimitados; os demais 1.190 não possuem delimitação e 60,2% (717 quilombos) não contam com certificação da FCP.Territórios autodeclarados sem certificação perderam 400% mais floresta do que áreas tituladas, mostrando vulnerabilidade e urgência na regularização. O avanço agropecuário em territórios autodeclarados sem certificação cresceu 1.248%. O estudo defende aprofundar investigações sobre ocupação irregular.Quilombo urbano de São Benedito, em Manaus, Amazonas. Fotos: Bruno Kelly/InfoAmazoniaDemora e conflitosAo contrário das terras indígenas, não há prazo constitucional para conclusão do processo. A demora faz comunidades desistirem da titulação. Em Manaus, o quilombo urbano de São Benedito obteve certificação com o apoio do Ministério Público Federal, mas o processo não avançou. A comunidade recuou por medo da desapropriação em área ocupada por comércios, alguns de moradores. A desapropriação é considerada a fase mais difícil do processo.Além do São Benedito, o Amazonas possui 58 quilombos em localidades ainda não reconhecidas como territórios. Três territórios estão delimitados, mas nenhum titulado. “As situações dos quilombos do Amazonas são levadas em reuniões com o Incra, mas a gente não vê avanço de jeito nenhum”, diz a líder quilombola Jamilly Silva, citando troca de chefias, falta de técnicos e orçamento.O resgate histórico foi marcante. À sombra de uma mangueira, moradores ouviram sobre a chegada de ancestrais do Maranhão, que trouxeram a imagem de São Benedito, antes pertencente a escravizados vindos de Portugal. “Eu sempre me reconheci como negra”, diz Jamilly. “A gente nunca teve medo ou vergonha”.Em setembro do ano passado, o Incra criou a Diretoria de Territórios Quilombolas, assumida por Mônica Borges, do território Itamatatiua, em Alcântara (MA). Ela aponta entraves orçamentários e jurídicos. O órgão teve bloqueio de R$ 15 bilhões e solicita R$ 150 milhões suplementares para 2026. “O quantitativo de técnicos disponíveis para a política ainda hoje está aquém da demanda”, afirma.Na fase final da titulação, famílias não quilombolas devem ser retiradas, o que gera disputas judiciais e altos custos. “Este ano, a gente já conseguiu executar mais de R$ 70 milhões em ordens de indenização”, diz. Leia também: 1.Série de podcasts ‘Casa Floresta’ traz indígenas, quilombolas e ribeirinhos 2.Rede de Sementes do Vale do Ribeira une quilombolas pelas florestas do futuro Quilombolas na COP30A Conaq pretende apresentar o novo mapa ao governo federal durante a COP30 e levará o documento “NDC dos Quilombos do Brasil”. A proposta inclui a titulação de territórios quilombolas na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do país e no Plano Clima Natural. A Conaq sugere 43 medidas, como acelerar processos fundiários, incentivar descarbonização da matriz energética e revisar planos de adaptação climática.A organização critica a ausência de quilombolas na Carta da Presidência Brasileira da COP30 e exige prazo de cinco anos para titulação — assim como ocorre com terras indígenas. Também reivindica inclusão no Fundo de Florestas Tropicais para Sempre (TFFF) e aumento de 20% para 40% na fatia destinada a povos tradicionais.“Essa COP, que está acontecendo no Brasil, deveria estar discutindo sobre o eixo central, que é o racismo ambiental”, diz Biko Rodrigues. Na COP16, na Colômbia, o grupo conquistou menção explícita a afrodescendentes no texto final.Oviedo defende que a inclusão da titulação na NDC é medida emergencial. Depois, sugere seminários entre o governo e o Conaq. O projeto seguirá refinando dados para dar visibilidade a territórios ainda ignorados pelas bases oficiais. *Com informações da InfoAmazôniaThe post Novo estudo revela 632 territórios quilombolas na Amazônia Legal appeared first on CicloVivo.