A coleta de esgoto só deve chegar (se chegar) em abril de 2026, mas a água limpa na torneira já é motivo de festa para os quase 7 mil moradores pobres da centenária Vila da Barca. Isso depois de muita luta da maior comunidade de palafitas da América do Sul, inicialmente excluída das obras de infraestrutura da COP30 em Belém. A capital paraense é a quinta pior cidade do país em saneamento básico de acordo com o ranking do Instituto Trata Brasil – serviço transferido para a iniciativa privada.Dados do IBGE apontam que apenas 19,7% dos 1,04 milhão de habitantes da cidade tem esgoto tratado, número que, segundo o governo paraense, está sendo duplicado com os projetos para a COP nos 13 canais estratégicos das quatro bacias hidrográficas da capital: Una, Tucunduba, Murutucu e Tamandaré.As obras de coleta e tratamento de esgoto das regiões centrais foram tocadas em velocidade recorde, e a maioria está “quase” pronta. E é aqui que mora o perigo. As intervenções para levar água potável à Vila da Barca, por exemplo, começaram em julho, a coleta de esgoto ficou para o ano que vem, a de tratamento ninguém fala. Ou seja, não há qualquer garantia de que a cidade sairá da penúria sanitária no pós-COP.Belém ressuscita outro debate: a privatização, concessão ou parceria público-privada para serviços de saneamento que se multiplicaram a partir de 2020 com o Marco Legal do Saneamento Básico, cuja meta – improvável de ser alcançada – é a de ofertar à população brasileira 99% de água potável e 90% de coleta e tratamento de esgoto até 2033.Neste ano, Aegea assumiu parte das cidades até então operadas pela Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa), mas as obras recentes de Belém foram bancadas pelo consórcio pró-COP dos governos federal, estadual e municípal. Ao vencer a concorrência, a operadora firmou compromisso de prover esgotamento sanitário para a população de Belém e de mais 25 municípios dentro das metas do Marco Legal, e margem mais larga, até 2039, para outras 75 cidades paraenses. É ver para crer.Não foram poucas as concessões que falharam nas promessas de investimentos, com pedidos de revisão de valores, deficiências no atendimento e aumento de tarifas. Destacam-se aqui as cidades do Rio de Janeiro, Manaus e Campo Grande.Companhias de grande porte em estados com carteiras rentáveis e desafios de universalização baixos passaram para operadores privados. Isso vale para a Sanepar, do Paraná, com cobertura sanitária de 100%, e a Sabesp, em São Paulo, com 98% de água e mais de 80% de esgoto tratado nas cidades em que a ex-estatal operava. A próxima na fila é a Copasa de Minas Gerais, outra empresa de excelência, cuja privatização tem sido contestada pelo formato, preço e oportunidade (ano eleitoral).A questão aqui não é se o serviço público de água e esgoto é melhor ou pior se operado por empresa estatal ou privada. Há prós e contras nos dois modelos. Mas é fato que nos países desenvolvidos hoje há mais reestatização do que privatização nessa seara. Reportagem da Folha de S.Paulo informa que de 2000 a 2015 houve remunicipalização de 235 serviços no mundo, abrangendo mais de 100 milhões de pessoas, chegando a 364 em 2024, incluindo Paris e Berlim. A maior parte das reversões se dá devido à baixa qualidade dos serviços, tarifas altas e dificuldades de monitoramento e controle.Seja público ou privado, saneamento é decisão política. Mesmo com a proximidade da COP30, só chegou à Vila da Barca depois de os moradores botarem a boca no trombone, acusando o governo local de promover “racismo ambiental” ao excluir a comunidade das obras de infraestrutura. Espera-se agora que os políticos da linda Belém, que mudou de cara para sediar a COP30, cumpram a promessa do esgoto não só de abril, mas de 2033 e 2039.Tida antecipadamente como fracasso por alarmistas, a COP30 que começa oficialmente nesta segunda-feira já colheu alguns resultados positivos nos eventos pró-clima que a antecederam. Para a tristeza de negacionistas e céticos, pode até mesmo ser um “surpreendente” sucesso.Para Belém, que se transformou a olhos vistos, o maior legado esconde-se no subterrâneo do saneamento – parte dele ainda inconcluso. Em uma cidade com números sanitários tão indecentes, seria obrigatório manter a tração depois do fim da festa. Mas, como se sabe, saneamento é decisão política. ] Mary Zaidan é jornalista