Entre o necessário e o possível (por Hubert Alquéres)

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Nesta semana foram publicadas duas portarias pelo MEC que, mais do que medidas administrativas, representam intenções políticas de fundo. A primeira institui o Programa Escola Nacional Nêgo Bispo de Saberes Tradicionais, voltado à valorização dos saberes afro-brasileiros, indígenas e populares. A segunda cria a nova Política Nacional de Educação do Campo, das Águas e das Florestas, ampliando e redesenhando o escopo do antigo Pronacampo.São iniciativas que respondem a demandas históricas de comunidades tradicionais, de educadores comprometidos com a pluralidade cultural brasileira e de movimentos sociais que lutam para que a escola pública reconheça e incorpore as diferentes epistemologias que constituem o país. A escolha de nomes simbólicos, como o de Nêgo Bispo, e a retomada de políticas específicas para os territórios do campo, das águas e das florestas, dão a essas portarias densidade simbólica e expectativa transformadora.Mas é preciso cautela: o desafio não está apenas em anunciar boas intenções, e sim em sustentá-las com planejamento, financiamento e capacidade de execução. O Brasil acumula um histórico preocupante de políticas que ficam no papel, muitas vezes porque foram desenhadas de forma desconectada da realidade das redes de ensino, ou porque não houve condições técnicas e materiais para sua implementação.Basta lembrar que a Lei nº 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, completou em 2023 seus 20 anos — e ainda hoje luta para sair do plano normativo e se tornar uma realidade efetiva nas escolas. A ampliação dessa legislação pela Lei nº 11.645/2008, que incluiu também a temática indígena, tampouco resultou, até aqui, em mudanças estruturais na formação docente, no currículo e no material didático em larga escala. O que vemos são experiências isoladas, muitas vezes mantidas à custa da militância individual de professores e gestores escolares. A distância entre o reconhecimento legal e a prática escolar ainda é enorme.A lista de urgências na educação brasileira é extensa: inclusão de pessoas com deficiência, questões de saúde mental, protocolos para a Inteligência Artificial, valorização da educação infantil, ampliação da educação profissional, melhoria do ensino médio, combate à evasão escolar, avaliação e regulação do ensino a distância… Nenhuma dessas pautas é descartável. Todas exigem ação pública, coerência normativa e, sobretudo, capacidade operacional.Nesse contexto, é importante lembrar que está em elaboração o novo Plano Nacional de Educação (PNE), ao mesmo tempo em que avança, com controvérsias, a discussão sobre o Sistema Nacional de Educação (SNE). Ambos são instrumentos fundamentais para dar organicidade, coordenação e permanência às políticas públicas educacionais. Mas seu sucesso dependerá menos do número de metas ou da arquitetura legal e mais da capacidade do Estado brasileiro de transformar pactos normativos em ações articuladas e sustentáveis.O risco está em transformar a agenda educacional em um arquipélago de iniciativas fragmentadas, marcadas por descontinuidade, baixa institucionalização e fragilidade técnica. É preciso lembrar que portarias não produzem, por si só, transformação educacional. Quando desconectadas das estruturas reais de formação, financiamento e gestão, tendem a se tornar simbólicas ou performáticas — e às vezes até contraproducentes, ao gerar uma falsa sensação de avanço.Em tempos de forte polarização, é também essencial que diretrizes como essas não sejam capturadas por agendas ideológicas ou disputas identitárias que desvirtuem seu propósito pedagógico e público. A educação é, por natureza, um campo plural e democrático, e deve ser protegida tanto do uso político-partidário quanto de leituras reducionistas que transformem avanços civilizatórios em trincheiras. Quando normas são apropriadas como bandeiras de guerra cultural, seu potencial transformador se perde — e com ele, a confiança das redes, das famílias e dos próprios educadores.O desafio, portanto, não é escolher ou descartar frentes de atuação. O ponto central é saber priorizar sem excluir, estabelecer metas realistas sem abandonar os compromissos civilizatórios que devem orientar a política educacional em uma sociedade democrática.Nesse processo, os Conselhos Estaduais de Educação — assim como os sistemas estaduais e municipais — têm papel estratégico. Cabe a eles ajudar a dar racionalidade normativa ao conjunto das políticas públicas, evitando tanto o imobilismo regulatório quanto o ativismo normativo que ignora os limites de execução local. É papel dos conselhos articular as diretrizes federais com as realidades pedagógicas, administrativas e financeiras das redes públicas e privadas.É necessário ousar nas ideias, mas com os pés fincados no chão da realidade. Entre o necessário e o possível, há um espaço de mediação responsável — e é nesse espaço que deve se afirmar a boa política educacional.___________________________________Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação. Foi secretário estadual de Educação e professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.