Estudante da UFF tem matrícula cancelada após cota questionada

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A biomédica Samille Ornelas, de 31 anos, realizou um sonho ao ser aprovada para o curso de Medicina na Universidade Federal Fluminense (UFF), no início de 2024. Foram mais de cinco anos de tentativa, intercalando plantões de 12 horas no trabalho e uma rotina de estudo própria por meio de vídeos na plataforma YouTube. No entanto, durante o processo de pré-matrícula, a banca de hetereoidentificação desaprovou a estudante por considerar que ela não tem características fenotípicas de uma pessoa parda, cota na qual Samille estava inserida."Minha cor nunca foi uma dúvida. Na minha vida inteira, ninguém nunca questionou a minha cor. Eu não sabia a quem recorrer, quem pudesse me ajudar. Eu entrei com um recurso e achei que fosse só uma bobeira, não entendi a gravidade. A sensação que eu tenho é que eles sequer olharam. Enviei até o meu ProUni, porque me formei em Biomedicina, e foi com a mesma modalidade de cota. A banca colocou até que eu sou preta, nem colocaram parda. No documento do SUS, estou como preta, assim como no documento do ProUni. É confusa essa questão do preto ou pardo, mas eu sou um dos dois. Branca, eu nunca me encaixei", desabafou a biomédica.Em março de 2024, a UFF indeferiu o recurso de Samille e manteve a decisão da banca de heteroidentificação. A estudante decidiu tomar medidas judiciais enquanto se preparava para realizar o Enem novamente. Em outubro, a menos de um mês da prova, ela sofreu um golpe de um bandido que se passou pelo advogado que ela havia contratado. Na ocasião, o estelionatário afirmou que a Justiça tinha decidido pela aprovação dela no curso de Medicina, mas a informação era falsa e o processo ainda estava em julgamento."Nessa mesma semana, minha mãe caiu e quebrou a coluna. Foi toda uma preocupação, hospital e tudo mais. Eu fiz a prova do Enem e, na semana seguinte, minha avó adoeceu e faleceu no início de dezembro. No fim de fevereiro, meu pai faleceu e, três dias depois, minha mãe foi atropelada. Passei três semanas com ela no hospital", contou.Em janeiro, a 1ª Vara Federal de Niterói concordou com o pedido de Samille e determinou que a UFF matriculasse com urgência a estudante no primeiro período de 2025 no curso de Medicina. A biomédica saiu do trabalho no sábado, pediu demissão e viajou de ônibus por oito horas até o Rio de Janeiro. Na segunda-feira, ela teve seu primeiro dia de aula, ainda procurando imóveis para morar."Meus tios estão me bancando aqui conforme eles podem. Eu trabalhava como biomédica, então conseguia me manter, cuidar das minhas coisas... Agora, estou sem trabalho. Tenho apoio financeiro dos meus tios, mas eles não conseguem me sustentar", explicou.No fim do primeiro período, a aluna tentou entrar refeitório da faculdade e teve o acesso negado. Ela tentou acessar o aplicativo da universidade e todos os seus dados haviam sido apagados do sistema. Foi assim que Samille soube que, no dia 27 de maio, um desembargador aceitou a apelação da UFF e determinou que a matrícula da estudante fosse cancelada."Os documentos apresentados pela autora, tais como fotos suas, de sua família e de outros candidatos não fazem prova de sua condição de pessoa parda, para os fins exigidos pelo certame. Em suma, não há qualquer situação que mereça ou possibilite que o Judiciário vista a roupa da Comissão Avaliadora de autodeclaração e adote novos critérios próprios", escreveu o magistrado.  Samille tentou entrar em contato com a faculdade por e-mail, mas a única resposta que recebeu foi de que o caso seria encaminhado ao setor responsável."O pessoal da minha turma está me apoiando, todo mundo ficou indignado. Eu não queria expor essa situação, não queria me expor. Sempre fui uma pessoa reservada. Estou tendo muitas crises de ansiedade, meu psicológico está completamente abalado. Além disso tudo, estou lidando com o luto do meu pai e da minha avó, que foi quem me criou. A sensação que eu tenho é de impotência, de que eu não sou ninguém. Não consigo me olhar no espelho, não consigo reconhecer minha identidade. Minha autodeclaração, minha cara, minha identidade, tudo está em questionamento. Só sei chorar o dia inteiro, não consigo comer", desabafou a biomédica.Ainda consternada com a situação, Samille tentou retomar os estudos para prestar o Enem neste ano. "Eu não consigo fazer quase nada, eu não consigo tomar um banho, não consigo comer, quanto mais sentar para estudar por uma prova. Ano passado, eu fiz a mesma quantidade de acertos em questões do ano anterior e, por causa do TRI, fiquei a alguns pontos do corte", relatou."É uma situação de frustração. Parece que é questão de sorte: sorte em passar por causa da TRI, sorte da banca ir com a sua cara... Eu acho que só não foram com a minha cara, é a sensação que eu tenho. É muito constrangedor, muito triste. É como se eu tivesse em uma areia movediça. Quanto mais eu me esforço para seguir em frente, mais eu afundo", concluiu.Procurado, a UFF ainda não se manifestou sobre a situação.