A guerra já não é feita apenas de explosões e sirenes. Acastelam-se silêncios. Dos que morrem sem som, de boca fechada e ventre seco, enrolados num cobertor sujo, enquanto lá fora o mundo gira como se fosse verão. Em Gaza, não há estações — há apenas uma: a do cerco. E o tempo não se mede em horas, mas em ossos visíveis por debaixo da pele. Em rostos fundos e olhos cinzentos que desabam em tragédia.Foi no domingo que a fronteira de Rafah se abriu, finalmente, como uma ferida libertada. Cerca de 120 camiões entraram no enclave sitiado, carregados com o essencial: arroz, farinha, leite, analgésicos. Depois de semanas de pressão internacional, o Egito permitiu que algum alívio passasse. Mas para as famílias no campo de refugiados de Jabaliya, ou para os órfãos de Deir al-Balah, o gesto soube a pouco. A morte já tinha chegado antes. Tinha nome e tinha peso: 1,7 kg. Foi o peso da pequena Zainab ao morrer. Menos do que ao nascer. Um campo de ruínas e crianças sem infânciaA morte em Gaza já não é uma questão de bombas. É de cálculo. De percentagens. De fronteiras fechadas e quando abertas é a gotejar. A fome, dizem os especialistas da OMS, é agora «a principal causa de mortalidade infantil» no enclave. O WFP fala num risco real de «fome em massa». A UNICEF descreve um «cenário de colapso humanitário absoluto».E os números contam a história com brutalidade:59.800 mortos desde o início da guerra. Em julho, 63 dos 74 óbitos por fome ocorreram nesse mês, incluindo 24 crianças com menos de cinco anos. Cerca de 20 500 crianças receberam tratamento por desnutrição aguda desde abril, com muitas a não resistirem. O ataque e o cerco: um ciclo de horrorO horror começou — para os olhos do mundo — a 7 de outubro de 2023, com o ataque do Hamas ao sul de Israel. Mas para quem vive em Gaza, a violência começou muito antes. Décadas antes. A ocupação, os bloqueios, a destruição sistemática de casas, escolas, hospitais. A existência sob drones, muros e cortes de eletricidade.Depois do ataque, Israel lançou uma operação de cerco total, numa das zonas mais densamente povoadas do mundo. Em semanas, Gaza foi transformada num mosaico de escombros. Uma cidade sem cidade. Uma infância sem infância.Como se já não bastasse todo o sofrimento, a ajuda humanitária foi bloqueada. Os jornalistas foram silenciados. E a fome — essa guerra invisível — começou a devorar os vivos com a lentidão de um veneno.Em Março de 2002, José Saramago integrou uma delegação do Parlamento Internacional de Escritores que visitou a Palestina a convite de Mahmoud Darwish. Esteve em Ramala com o anfitrião, de quem era amigo e de quem escreveu no seu Caderno: «Ler Mahmud Darwish, além de uma experiência estética impossível de esquecer, é fazer uma dolorosa caminhada pelas rotas da injustiça e da ignomínia de que a terra palestina tem sido vítima às mãos de Israel».Em torno desta viagem, impressionado com o que viu, Saramago proferiu declarações que causaram forte polémica: «O que é preciso fazer é dar o alarme em todo o mundo para dizer que o que acontece na Palestina é um crime que podemos deter. Podemos compará-lo com o que aconteceu em Auschwitz. É a mesma coisa, embora mantenhamos na mente as diferenças de tempo e de lugar».Como resultado, o mundo, hoje, começa a dar-lhe razão. Fome planeada: a acusação das ONGMais de 100 organizações humanitárias lançaram um apelo conjunto à comunidade internacional. Médicos Sem Fronteiras, Save the Children, Oxfam, o Comité Internacional da Cruz Vermelha. Todas concordam num ponto: o que se vive em Gaza não é um colapso espontâneo. É uma fome planeada. Uma arma de guerra.Na ONU, o termo ‘starvation engineered’ foi repetido mais de uma vez. Como se a fome tivesse sido programada, organizada, usada como tática de pressão política.Sam Rose, um responsável da UNRWA (Sam Rose), afirmou que Gaza estava a viver «um cerco medieval», combinado com políticas de terra queimada — sem comida, água ou combustível — transformando a situação em algo «pior do que fome: um genocídio tecnológico».Portugal, Gaza e o dilema do reconhecimentoPortugal mantém sob avaliação a eventual decisão de reconhecer formalmente o Estado da Palestina. Paulo Rangel, chefe da diplomacia, garante que «Portugal sempre esteve aberto a esse reconhecimento», mas rejeita ser pressionado por movimentos diplomáticos internacionais:«Portugal não está pressionado a reconhecer o Estado da Palestina só porque França o vai fazer», disse o Ministro dos Negócios Estrangeiros em notícia avançada pela Sic Notícias.Para Rangel, Portugal sustenta-se sobretudo numa linha de mediação equilibrada, no entanto o ministro português considera que várias ações de Israel são «altamente condenáveis segundo o Direito humanitário» e confirmou que Portugal está disponível — inclusive no âmbito da União Europeia — para reforçar o apoio à UNRWA, agência da ONU para os refugiados palestinianos, pode ler-se no mesmo artigo.Com efeito, este posicionamento tem gerado tensões políticas internas: o Partido Socialista e outros grupos exigem explicações sobre o «silêncio ensurdecedor» do governo, ao passo que partidos de esquerda lamentam que Portugal tenha recusado incluir menção à insegurança alimentar em Gaza na declaração setorial da CPLP. Rangel respondeu que se tratava de um documento marginal, fora do âmbito principal da cimeira.Gaza resiste nas vozes do povoO corpo não reconhece a guerra como um acontecimento diplomático. Não há negociação para a fome. Nem intervalo. A fome é isso: um animal silencioso que primeiro rói por dentro e depois cala tudo. Até o choro. Até a infância.Contra isso, pelas ruas do planeta, de Roma a Lisboa, há quem recuse o silêncio. Não são diplomatas, não são chefes de Estado. São mães de luto com as mãos erguidas, estudantes com cartazes cobertos de tinta, médicos exaustos que voltaram das frentes de miséria. Em Londres, milhares de corpos moveram-se como um só — um rio de vozes a atravessar a cidade com bandeiras palestinianas e cartazes a gritar «ceasefire now» e «children are starving» mesmo contra as restrições do país. Em Paris, pessoas também romperam o protocolo, enfrentaram gás lacrimogéneo, e ninguém arredou pé. Porque há coisas que um governo não vê, mas um povo sente.São vozes a quebrar a anestesia. Manifestos espontâneos, velas acesas nos passeios, bebés deitados em carrinhos enquanto os pais gritam contra o cerco, contra a fome, contra a normalização do horror. Além disso, nas universidades de Amesterdão, Chicago, Berlim, estudantes montaram tendas, ergueram barricadas simbólicas e recusaram continuar a vida como se não houvesse corpos a definhar a sul do Mediterrâneo.A comunicação social tem vindo a dar mais espaço a estas vozes, mesmo que as multidões que se levantam em todo o mundo raramente encham os ecrãs com a sua força. Há notícias dispersas, breves, mas vivas, de quem se arrisca a ser silenciado pelas suas convicções. O vento leva os gritos e as redes — essas margens digitais onde o real se encontra com o virtual — guardam os vídeos e as lágrimas de tantos povos unidos pela Palestina.No fundo, o que há são corpos: os que morrem dentro de Gaza, os que gritam fora dela, e os que, dentro de nós, não sabem se ainda estão vivos. Alice Walker, escritora de renome e ativista, escreveu: «A forma mais comum das pessoas desistirem do seu poder é pensarem que não têm nenhum». Está tudo aí.O conteúdo Em Gaza, as crianças dormem com fome e acordam com bombas aparece primeiro em Revista Líder.