“O rabo abana o cachorro, ou o cachorro abana o rabo?”Estamos testemunhando algo muito maior que uma simples atualização de software. O lançamento do Comet pela Perplexity e o iminente navegador da OpenAI não representam apenas mais uma rodada na guerra dos navegadores, mas o início das aplicações agênticas. A diferença é fundamental: IA tradicional responde a comandos e requer orientação humana constante, enquanto IA agêntica pensa, planeja e age de forma autônoma para completar fluxos de trabalho inteiros.Na minha coluna anterior, "O browser da OpenAI e o fim da Internet como a conhecemos", provoquei o debate sobre como uma única decisão tecnológica poderia redefinir fundamentalmente nossa relação com a informação online. Agora, pretendo expandir essa análise para explorar uma transformação ainda mais ampla: a mudança radical na forma como fazemos buscas e interagimos com conteúdo digital.Dados da SimilarWeb sobre uso de inteligência artificial no Brasil mostram um crescimento explosivo nas plataformas de IA entre 2023 e 2025: o ChatGPT saltou de 18.840 para mais de 20 milhões de usuários únicos, um crescimento de 111.280%, capturando 65,5% do share de audiência.O Google Gemini cresceu impressionantes 3.183.507%, alcançando 20,5% de share, enquanto o DeepSeek registrou 948.663% de crescimento, conquistando 8,2% de share. Estamos diante de uma migração massiva de comportamento. Como diz Amy Webb, é importante diferenciar "trend" de "trendy", e estes números indicam uma transformação estrutural, não um modismo. ChatbotUVs 2023UVs 2025Crescimento AbsolutoCrescimento (%)Share UV 2025ChatGPT.com18 84020 984 640+20 965 800+111 280%65,5%Gemini (Google)2076 579 136+6 578 929+3 183 507%20,5%DeepSeek2782 635 643+2 635 365+948 663%8,2%Copilot (Microsoft)33 157913 198+880 041+2 655%2,8%Grok (X/Twitter)146662 015+661 869+454 768%2,1%Fonte: Similarweb 1H25 vs. 1H23Os números revelam a dimensão dessa mudança. O navegador, ferramenta fundamental de acesso à web como a conhecemos, está sendo redefinido. Alguns movimentos apontam para um modelo de "walled garden" com browsers que filtram e interpretam toda informação.Mas a transformação é mais complexa. Vamos examinar primeiro os movimentos de redefinição da interface tradicional, depois os modelos híbridos com IA integrada, seguidos pelos modelos completamente AI-first.Por fim, discutiremos os desafios críticos de governança e o movimento iniciado na União Europeia pelas próprias empresas para que a regulação não congele a inovação e o crescimento econômico.Shift: reimaginando o controleAntes de mergulharmos nos gigantes da IA, vale conhecer uma abordagem diferente. O Shift Browser propõe uma filosofia intrigante: um navegador "reimaginado por você", onde cada elemento da interface pode ser personalizado através de simples arrastar e soltar. Barras de ferramentas, aplicativos e controles se reorganizam conforme sua necessidade, transformando o navegador em um verdadeiro centro de comando pessoal.A funcionalidade "Spaces" permite organizar a navegação em áreas separadas para trabalho, hobbies e projetos, criando uma experiência mais focada e controlada pelo usuário. Embora não seja intrinsecamente "AI-first", o Shift introduz algo fundamental: a ideia de que a navegação deve ser moldada pelo usuário, não ditada pela tecnologia. Uma filosofia que caminha na direção oposta aos agentes autônomos, devolvendo ao usuário o controle da experiência. Google Gemini: o gigante híbridoDiferentemente da filosofia de controle total do Shift, o Google aposta na coexistência entre automação inteligente e supervisão humana. O Gemini integrado ao Chrome funciona como um assistente pessoal que compreende o contexto da página em que você está, oferecendo resumos para decisões rápidas, preparando planos de projetos ou criando auxiliares de estudo. O "Gemini Live" permite conversas em tempo real, transformando o navegador em um colaborador inteligente.A abordagem do Google é deliberadamente híbrida: manter a estrutura familiar do Chrome enquanto adiciona capacidades agênticas profundas. Com controles granulares que permitem ao usuário decidir se o Gemini salva atividades, pausar seu funcionamento ou controlar acesso ao conteúdo do site, o Google busca equilibrar inovação com confiança do usuário. Diferentemente da filosofia de controle total do Shift, o Google aposta na coexistência entre automação inteligente e supervisão humana.Esta estratégia reflete uma compreensão crucial: a IA já permeia todo o Chrome para performance, produtividade e segurança. O Gemini é apenas a manifestação visível de uma integração muito mais profunda. Perplexity Comet: a revolução AI-firstO Comet da Perplexity representa uma filosofia radicalmente diferente. Descrito como um "sistema operacional cognitivo", visa transformar a experiência de navegação de "browsing" para "thinking". O CEO Aravind Srinivas é claro: estamos mudando de "navegar" para "pensar".O "Comet Assistant" reside em uma barra lateral e consegue "ver e entender" qualquer página web ativa. Quer fazer perguntas sobre um vídeo do YouTube, analisar um documento do Google Docs ou obter resumos de artigos complexos? Tudo sem alternar abas ou copiar informações. A promessa é sedutora: um navegador que não apenas exibe informação, mas a processa e contextualiza em tempo real.Com preço de US$200 mensais para assinantes Max, o Comet aposta em um modelo premium que reconhece o valor desta conveniência cognitiva. Construído sobre Chromium, mantém compatibilidade com extensões existentes enquanto adiciona um bloqueador de anúncios nativo e armazenamento local de dados para privacidade.Aqui encontramos o "novo pacto faustiano da informação" que discuti no artigo anterior: o conteúdo de maior valor é usado para treinar a IA que retorna pouco tráfego às fontes originais; se ainda há bloqueio de anúncios - que sustenta a maioria dos produtores de conteúdo - mesmo esses poucos cliques também terão valor zero.Mas há limitações reveladoras. Testes com tarefas complexas, como reservar estacionamento em aeroportos, resultaram em "problemas de alucinação" com informações incorretas e falhas nas transações. Estes exemplos ilustram que agentes autônomos ainda lutam com tarefas simples do cotidiano, que demonstram maior complexidade para os algoritmos. OpenAI: a ambição totalA OpenAI não esconde suas ambições. Além do lançamento iminente de seu navegador nativo, um documento de estratégia interna vazado revela planos ainda mais audaciosos: substituir a internet existente com o ChatGPT até 2026, tornando-o "sua internet" onde todas as interações humano-computador seriam mediadas pela IA.Com 400 a 500 milhões de usuários semanais, o ChatGPT já se posiciona como a "homepage do mundo". A visão é que ele se torne o "front-end da web", onde bots executam tarefas para usuários humanos através de um "Model Context Protocol" que permite acesso direto aos sistemas dos sites, eliminando a navegação manual.A estratégia é um ataque frontal ao modelo de troca de valor da internet. Quando a IA é o destino final, não há tráfego a distribuir de volta às fontes originais. A OpenAI contratou engenheiros fundadores do Chrome e demonstra interesse em comprar o navegador do Google caso seja forçado a vendê-lo.Estamos diante de uma tentativa de criar um novo "oligopólio da informação", onde conteúdo é mediado e sintetizado por agentes conversacionais, sem tráfego direto para as fontes originais. Anthropic: governança em açãoEm meio a esta corrida tecnológica, a Anthropic se destaca por uma razão diferente. A empresa assinou o "Código de Prática de IA de Propósito Geral" da União Europeia, estabelecendo padrões de transparência através de estruturas obrigatórias de segurança baseadas em sua "Responsible Scaling Policy".Este movimento é significativo porque demonstra que padrões de segurança flexíveis podem preservar a inovação enquanto estabelecem responsabilidades claras. Com a UE estimando que a IA pode adicionar mais de 1 trilhão de euros anualmente à sua economia até 2030, a assinatura do Código posiciona a Anthropic como pioneira em um passo importante de comprometimento com a governança responsável de IA.Os riscos invisíveisEm uma publicação recente no LinkedIn, Cezar Taurion expressou uma preocupação fundamental: o lançamento acelerado de funcionalidades de IA sem compreensão adequada dos riscos. Agentes autônomos exigem permissões ampliadas que incluem acesso a dados financeiros sensíveis, informações pessoais críticas e credenciais de sistema, aumentando exponencialmente a vulnerabilidade dos sistemas a ataques cibernéticos.A recomendação de Sam Altman para conceder "acesso mínimo necessário" esbarra na falta de entendimento e consciência sobre exposição de dados que o uso dessas ferramentas traz, expondo uma parcela gigantesca da população.É um dilema similar ao da regulação: maior restrição compromete a utilidade da ferramenta; permissividade aumenta o risco de exposição de dados confidenciais ou críticos. Tanto no nível individual (usuários configurando permissões) quanto no nível sistêmico (reguladores definindo políticas), existe o mesmo dilema fundamental entre funcionalidade e segurança.Navegar é precisoA expressão "Navegar é preciso, viver não é preciso", popularizada por Fernando Pessoa sob o heterônimo Alberto Caeiro, advém de uma antiga máxima romana, mas ganha sentido filosófico profundo em sua obra. Para Pessoa, "navegar" simboliza a busca por um propósito que direcione a existência, enquanto "viver" representa a vida em sua essência incerta. O poeta sugere que, embora a vida seja inerentemente imprecisa, é a dedicação a uma causa com sentido que confere clareza à nossa jornada. — esse trecho, a IA me ajudou no resumo, sem levar o clique de volta para as fontes :(Quando perdemos esse propósito, morremos em vida. No contexto digital atual, cabe questionar: estamos "navegando" em direção a interfaces que expandam nossa capacidade de explorar a complexidade e volume de informações online, ou apenas sendo "vividos" por bolhas que nos encapsulam sem propósito claro e nos limitam?A interface é o problema da interfaceA ambição da OpenAI de transformar o ChatGPT na "sua internet", mediando todas as interações humano-computador, lembra o "walled garden" do Facebook, que foi o pesadelo do Google ainda em 2013, quando toda a empresa mudou para o foco "mobile first". O modelo de walled garden do Facebook, analogamente, pretendia fazer com que fosse a porta de entrada e a interface para o consumo de conteúdo web. Mas o problema fundamental pode ser outro, e reside na própria interface.A aposta de que um chat pode se tornar "a sua internet" subestima por que a web funciona. A internet não é linear. Valorizamos experiências ricas de comparação e exploração visual. Por isso, usamos abas, janelas e interfaces visuais. Precisamos comparar informações, explorar rotas alternativas simultaneamente e ter visão espacial do conjunto, seja para consumir notícias, decidir uma compra ou fazer algum planejamento.Um chat, por sua natureza sequencial, é um retrocesso nesse sentido. Para tarefas complexas, descrever o passo-a-passo em texto é muito menos eficiente que interagir com uma interface gráfica. Os "problemas de alucinação" do Comet ao tentar reservas de estacionamento ilustram perfeitamente estas limitações.From the fieldO que observamos é uma transformação da economia da informação onde a disputa não é pelo tráfego em si, mas pelo controle do "meio de troca" de informações. Navegadores AI-First demonstram capacidade de impacto significativo no domínio do meio de troca, sinalizando uma transposição de valor do publisher para o interpretador.Os riscos de adoção e uso massivo de IA nem sempre são claros no primeiro momento. Pressionadas pelo "hype", empresas podem negligenciar análises rigorosas de risco antes da adoção em larga escala de agentes autônomos.As empresas devem ter clareza na governança de estratégia, implementação e aplicação de IA ao mesmo tempo em que se preparam para navegar nas mudanças. Não adianta nadar contra a maré. É preciso utilizá-la a seu favor, com governança. Aliás, repito a citação que fiz recentemente em outro artigo: "Good governance isn't tested when things are smooth; it's revealed when the unexpected happens.", Dra. Carine J-Ferreira.Implicações para liderançaA transformação dos navegadores exige três decisões estratégicas imediatas:Auditoria de dependência: Mapear onde sua organização já depende de IA para decisões críticas e avaliar vulnerabilidades na cadeia de fornecimento de informações.Preparação regulatória: Antecipar frameworks como o da UE antes que se tornem obrigatórios. O movimento da Anthropic mostra que liderança proativa em governança será vantagem competitiva. Sugiro leitura do artigo do Prof. Virgilio Almeida, na Folha de São Paulo do dia 27/7: "Nem Europa nem Texas" sobre a necessidade de o Brasil se posicionar e regular tecnologia com ambição e soberania.Estratégia de interface: Definir como sua empresa será interpretada por IA e como manterá controle direto do relacionamento com clientes. A questão não é se adotar IA, mas como preservar agência estratégica.The 42-QuestionO chat da OpenAI conseguirá superar nossa necessidade natural de comparar, explorar rotas alternativas e ter visão espacial do conjunto, ou é o rabo tentando abanar o cachorro? Aliás, somos rabo ou cachorro?Continue a conversa: como sua organização está se preparando para a era dos agentes autônomos? Quais frameworks de governança você considera essenciais?Glossário(feito por IA, revisado por mim)IA Tradicional: Sistemas de inteligência artificial que respondem a comandos específicos e requerem orientação humana constante para executar tarefas.IA Agentica: Sistemas de IA que pensam, planejam e agem de forma autônoma para completar fluxos de trabalho inteiros sem supervisão humana contínua.Walled Garden: Modelo de ecossistema fechado onde uma empresa controla totalmente o acesso e a distribuição de conteúdo, limitando a liberdade do usuário de navegar livremente.Model Context Protocol (MCP): Protocolo que permite que agentes de IA acessem diretamente os sistemas dos sites, eliminando a necessidade de navegação manual.AEO (Answer Engine Optimization): Otimização de conteúdo para motores de resposta de IA, em contraste com SEO (Search Engine Optimization) para motores de busca tradicionais.Chromium: Projeto de navegador web de código aberto que serve como base para muitos navegadores, incluindo Google Chrome.API-First: Arquitetura de desenvolvimento onde as interfaces de programação de aplicações (APIs) são priorizadas desde o início do design do sistema.Responsible Scaling Policy: Política da Anthropic que estabelece protocolos de segurança para o desenvolvimento responsável de sistemas de IA conforme eles se tornam mais poderosos.Código de Prática de IA de Propósito Geral da UE: Framework regulatório europeu que estabelece padrões de transparência e responsabilidade para empresas de IA.