No auge de uma turnê recorde em apoio ao seu aclamado álbum country Cowboy Carter, Beyoncé está no topo do mundo.Frequentemente descrito como uma retomada de suas raízes no country, Cowboy Carter, lançado no ano passado, questiona os limites dos gêneros musicais e destaca a contribuição contínua de artistas negros para a música country.Ao anunciar o álbum, Beyoncé revelou que ele “nasceu de uma experiência” em que se sentiu indesejada — referência provável aos comentários racistas que surgiram após sua apresentação no Country Music Awards em 2016, quando alguns fãs do gênero alegaram que ela não deveria ter participado do evento. Leia mais Beyoncé leva novo funk brasileiro à turnê "Cowboy Carter"; conheça música Beyoncé e Jay-Z cantam juntos de novo em turnê e fãs vibram com selinho Músicas inéditas de Beyoncé foram furtadas de carro em Atlanta, diz site O álbum e a turnê que se seguiu — com encerramento previsto para este mês — são uma resposta direta aos críticos. O universo visual criado por Beyoncé, tanto no disco quanto nos palcos, aponta para os diversos papéis que pessoas negras desempenharam ao longo da história dos Estados Unidos. Se o sistema insiste em negar a elas um lugar à mesa, Beyoncé parece determinada a levar sua própria cadeira — basta ver os milhares de fãs negros que, em cada show, vestem botas e chapéus country em sinal de pertencimento.Para uma artista da magnitude de Beyoncé, destacar essas narrativas pode ser algo poderoso. No entanto, a recepção dos fãs tem sido mais complexa.Enquanto muitos valorizam os elementos visuais que exaltam a negritude dentro do country e da história americana, outros esperam dela declarações mais explícitas sobre temas políticos contemporâneos — como o apoio dos Estados Unidos à guerra em Gaza ou as políticas de deportação agressivas. Para esses críticos, sua mensagem não vai longe o suficiente.“É verdade que Beyoncé já foi alvo de críticas extremamente injustas vindas de diversos setores. Ela não foi reconhecida como deveria por sua arte”, disse Stacy Lee Kong, crítica cultural e fundadora da newsletter Friday Things. “Mas, ao mesmo tempo, também percebemos certa superficialidade em sua postura política.”Como Cowboy Carter dividiu o públicoAntes mesmo do início da turnê Cowboy Carter, em abril, a arte e as letras do álbum já destacavam o papel dos negros na música country. Os shows reforçam essas mensagens, com referências adicionais à história negra e a símbolos patrióticos tradicionais.Ela interpreta o hino nacional norte-americano, The Star-Spangled Banner, na versão distorcida e emblemática de Jimi Hendrix em Woodstock; no telão, surge a frase: “Nunca peça permissão para algo que já é seu por direito.” Beyoncé abraça as cores da bandeira — vermelho, branco e azul — como mostra o collant azul cravejado de estrelas prateadas e o imenso casaco com a bandeira dos EUA que ela usou em seu show de 4 de Julho em Washington, DC.Embora muitos fãs se sintam empoderados pela releitura de Beyoncé sobre o imaginário americano, outros acham a simbologia rasa. Mesmo entre seus admiradores mais fiéis, há incômodo: “Acho que o problema está no silêncio dela diante das injustiças atuais que ocorrem sob essa mesma bandeira, enquanto ela se envolve nela o tempo todo”, comentou uma fã no X (antigo Twitter).Para uma artista cujo trabalho costuma ser minuciosamente pesquisado e repleto de camadas, o fato de Beyoncé não se posicionar diretamente sobre a política americana parece problemático, avalia Lee Kong. Celebrar o fato de ser americana e, ao mesmo tempo, enaltecer a contribuição dos negros à história dos EUA, sem reconhecer os danos causados pelo próprio país, soa simplista no contexto político atual. Apesar da mensagem artística ampla, muitos esperam mais.“Não dá para vender uma ideia e ser ambígua sobre ela”, diz Kong. “É uma linha muito difícil de se equilibrar, e tem ficado mais difícil conforme o público se torna mais sofisticado e atento às complexidades políticas que moldam nossas vidas.”Tal complexidade ficou evidente no episódio da camiseta dos Buffalo Soldiers usada por Beyoncé em sua apresentação de Juneteenth em Paris. A peça branca exibia a imagem dos soldados negros que atuaram no Exército dos EUA após a Guerra Civil e participaram da expansão para o Oeste — muitas vezes em campanhas contra indígenas, que os apelidaram de “Buffalo Soldiers”.Na parte de trás da camiseta, lia-se um texto que incluía a frase: “Seus inimigos eram os adversários da paz, da ordem e do assentamento: índios em guerra, bandidos, ladrões de gado, pistoleiros assassinos, contrabandistas, invasores de terras e revolucionários mexicanos.”A mensagem gerou intenso debate. Alguns elogiaram a homenagem aos soldados negros, enquanto outros criticaram o retrato negativo de indígenas e mexicanos, alegando que o texto os colocava como inimigos dos EUA. Beyoncé não se pronunciou sobre a controvérsia.Assista: Beyoncé coloca funk na turnê “Cowboy Carter”Beyoncé coloca funk na turnê "Cowboy Carter"; entenda Artistas devem explicitar suas posições políticas?Essa não é a primeira vez que Beyoncé é criticada por sua postura política — ou pela ausência dela. Em sua performance no Super Bowl de 2016, Beyoncé e suas dançarinas usaram trajes pretos e ergueram os punhos, em referência clara ao movimento dos Panteras Negras. Em 2020, ela se declarou a favor do movimento Black Lives Matter durante um discurso de formatura.Mas em 2023, quando o filme da turnê Renaissance foi exibido em Israel durante a guerra em Gaza — e vídeos mostraram israelenses pró-IDF cantando “Break My Soul” —, críticos argumentaram que a artista, que foi capaz de enviar mensagens políticas claras em 2016, deveria também se manifestar naquele momento.“Ela construiu um espaço e se tornou uma figura política, goste ou não disso”, disse B.A. Parker, coapresentadora do podcast Code Switch, da NPR.Mas será que artistas têm obrigação de declarar publicamente suas posições? Os fãs de Taylor Swift passaram anos tentando decifrar os sinais políticos sutis da cantora, que só recentemente começou a se manifestar mais abertamente. No Super Bowl deste ano, Kendrick Lamar pareceu rejeitar essa expectativa de vez, proclamando: “A revolução vai ser televisionada. Você escolheu a hora certa, mas a pessoa errada.”“Ela é uma das mulheres mais poderosas da indústria do entretenimento”, afirma Melvin Williams, professor da Universidade Pace, que estuda raça, gênero e sexualidade na cultura das celebridades. “Esperar que ela seja especialista em tudo, defenda todas as causas, se apresente impecavelmente — isso é um padrão impossível para qualquer ser humano.”Beyoncé endossou a candidatura de Kamala Harris no ano passado e, durante a turnê, também inseriu referências políticas mais sutis. A versão do hino tocada por Hendrix — durante a Guerra do Vietnã — é amplamente interpretada como uma forma de protesto, embora o guitarrista nunca tenha confirmado essa intenção. Em uma das imagens do livro da turnê Cowboy Carter, Beyoncé aparece costurando a bandeira dos EUA em uma máquina de costura, em tributo a Grace Wisher, jovem negra que ajudou a confeccionar a bandeira original. Seu vestido branco, com véu — possível alusão à metáfora do “véu” de W.E.B. Du Bois sobre a segregação racial — está salpicado de sangue.Cowboy Carter foi um risco, afirma Williams, tanto em termos criativos quanto nas mensagens sobre gênero e raça. Beyoncé sabe como provocar reflexão social, mas raramente dá entrevistas. Ela se comunica quase exclusivamente por meio de sua arte. Para muitos, sua mensagem está ali — e as cobranças por mais são um reflexo das expectativas desproporcionais impostas às mulheres negras.Apesar da pressão, é improvável que ela venha a “enfrentar de forma explícita, por exemplo, o histórico imperialista dos EUA ou a persistência do capitalismo no país”, afirma Williams.Mas, segundo Lee Kong, a obra de Beyoncé oferece um ponto de partida para pensar de forma mais crítica sobre o mundo ao nosso redor. Com o álbum e a turnê, essas conversas já estão acontecendo — com ou sem a participação direta da artista.Após recorde no Grammy, Beyoncé reverencia pioneira negra do country