Áreas reflorestadas da Mata Atlântica não se integram à floresta nativa

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A restauração da Mata Atlântica pode ser mais complexa do que apenas plantar árvores. Embora os esforços de reflorestamento avancem em larga escala, um novo estudo revela que as áreas replantadas ainda não conseguem se conectar plenamente aos fragmentos de floresta nativa.A pesquisa, publicada no Journal of Applied Ecology e conduzida por pesquisadoras da UFSCar e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, aponta que as áreas restauradas funcionam como “módulos separados” do ecossistema, comprometendo a biodiversidade e a resiliência da floresta.O artigo teve como primeiras autoras Débora Cristina Rother, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e Carine Emer, pesquisadora associada ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e ao Instituto Juruá (AM), que desenvolveram uma abordagem baseada na teoria de redes para analisar a conectividade ecológica de 28 áreas na região de Batatais, no noroeste do Estado de São Paulo.Segundo as pesquisadoras, a restauração ativa – com plantio de mudas em áreas totalmente desmatadas – resulta em comunidades vegetais que formam módulos separados dos fragmentos florestais remanescentes.“As áreas restauradas não se integram totalmente à paisagem”, resume Rother. “O que encontramos foi um subconjunto de espécies generalistas conectando o sistema, principalmente árvores de sementes pequenas, dispersas por aves.”A teoria de redes é uma abordagem matemática e computacional usada para compreender sistemas complexos formados por muitos elementos interconectados. Em vez de analisar cada componente de forma isolada, ela os representa como “nós” e as interações entre eles como “linhas”, possibilitando identificar padrões emergentes em conjunto.A mesma lógica que explica o funcionamento de redes sociais, redes neurais biológicas (circuitos de neurônios do sistema nervoso) e redes neurais artificiais (modelos computacionais inspirados no funcionamento do cérebro) também pode ser aplicada à ecologia, como no caso das “redes ecológicas”, em que se analisam interações entre plantas, animais e ambientes.Essa perspectiva mostra não apenas quem está presente em um sistema, mas como os elementos se relacionam e quais são cruciais para a estabilidade e a resiliência do todo.O estudo utilizou a teoria de redes para sintetizar um banco de dados complexo, obtido ao longo de anos de coleta de campo. “São dados raros, resultantes de um grande esforço coletivo de investigação”, destaca Emer.“A teoria de redes nos ajudou a enxergar o todo: em vez de enfocar fragmentos isolados, buscamos a interação entre esses fragmentos e áreas restauradas na paisagem.”Foram analisadas métricas estruturais, como conectância, modularidade e aninhamento. A conectância mede quantas conexões existem em uma rede em relação ao total possível. Quanto maior, mais espécies ou elementos estão ligados entre si.A modularidade indica a formação de subgrupos dentro da rede, nos quais certos elementos interagem mais entre si do que com o resto do sistema. Já o aninhamento ocorre quando áreas menos diversas contêm subconjuntos das interações presentes nas mais diversas, revelando uma hierarquia de inclusão.“Nossas redes apresentaram valores baixos de conectância, indicando que poucas espécies estão amplamente distribuídas. Já a modularidade mostrou-se intermediária, mas significativa, refletindo a separação entre áreas restauradas e os fragmentos nativos.E o aninhamento, que indicaria se as áreas restauradas poderiam ser consideradas subconjuntos das florestas, foi muito baixo. Isso reforça que as áreas restauradas ainda não espelham a diversidade natural”, afirma Emer.Ao investigar quais espécies atuam como “nós centrais” das redes, o estudo revelou padrões consistentes. “Identificamos que as espécies-chave compartilham duas características: sementes pequenas e dispersão por animais”, explica Rother.“São plantas como embaúba (Cecropia pachystachya), sangra-d’água (Croton urucurana Baill), tapirira (Tapirira guianensis Aubl) e guareia (Guarea guidonia Sleumer).”Essas árvores pioneiras são fundamentais para iniciar a sucessão natural. “São as primeiras a se estabelecer e criam condições para que outras espécies surjam depois”, diz a pesquisadora. “Aves como sabiás, sanhaços e tucanos, além de pequenos mamíferos, atuam como principais dispersores nesse processo.” Leia Mais Em meio a tempo seco, SP registra 7 focos de incêndio em vegetação Barco histórico de 22 m achado em obra da COP30 é restaurado e será exibido MPF dá 30 dias para governo apresentar plano de acesso a água a indígenas Apesar dos avanços, a restauração enfrenta barreiras estruturais. “Temos um gargalo gigantesco na produção de mudas da enorme diversidade tropical”, afirma Rother. Espécies importantes, como a guareia, são de difícil propagação. “Muitas vezes o viveirista tenta vários métodos e não consegue fazer germinar a semente.”Além da limitação técnica, há entraves de mercado. “Os viveiros produzem o que tem demanda e hoje a restauração é vista sobretudo como plantio de árvores ou captura de carbono”, observa Emer.“Mas restaurar não é só plantar árvores, nem apenas estocar carbono. É preciso restaurar processos ecológicos que garantam o funcionamento da floresta como um todo, como as interações flora e fauna.Se queremos restaurar diversidade, precisamos de subsídios para que espécies menos usuais passem a ser produzidas em escala e disponibilizadas no mercado.”Todos esses fatores considerados, um dos pontos centrais do estudo foi mostrar que plantar árvores não basta. É importante, mas, por si só, não resolve. “Uma floresta é composta por processos ecológicos complexos”, ressalta Emer.“Precisamos olhar para as interações ecológicas também: aves e mamíferos dispersando sementes, polinizadores garantindo a reprodução, ciclos de sucessão se estabelecendo.”Nesse sentido, técnicas como a instalação de poleiros artificiais para atrair aves podem auxiliar, ainda que de forma mais lenta. Outra estratégia em debate é a refaunação, ou seja, a reintrodução de grandes dispersores desaparecidos, como antas e cutias.“Se espécies com sementes grandes não têm mais dispersores, a solução pode ser reintroduzi-los”, argumenta Rother, lembrando experiências bem-sucedidas na Floresta da Tijuca e na Reserva Ecológica de Guapiaçu, ambas localizadas no Estado do Rio de Janeiro.Os resultados têm implicações diretas para políticas públicas e metas da Década da Restauração da Organização das Nações Unidas (ONU). “A diversidade de espécies usadas nas restaurações precisa aumentar”, enfatiza Emer. “Não podemos nos limitar a um conjunto reduzido, porque isso compromete a integração das áreas ao todo da paisagem.”Para Rother, a estratégia deve ser combinar espécies pioneiras, que garantam a sucessão inicial, com espécies raras e de sementes grandes, que dificilmente chegam sozinhas. “A restauração precisa considerar as características funcionais das plantas, e não apenas aumentar a lista de espécies”, afirma.Apesar das limitações atuais, as pesquisadoras mantêm o otimismo. “Os fragmentos e as áreas restauradas formam uma meta-rede”, diz Emer. “Ainda que hoje seja modular, essa meta-rede pode se tornar mais conectada se aumentarmos a diversidade e favorecermos as interações.”Estudo: Brasil registra queda de 14% em desmatamento na Mata Atlântica