Os pallets de ajuda humanitária caíam de paraquedas, abrindo-se sobre a população faminta e exausta da Faixa de Gaza.No solo, a maioria das pessoas foi obrigada a deixar suas casas e se concentrar em uma pequena parte do território. Em campos de tendas, lutam para conseguir comida, água e remédios. Muitas casas, comércios e bairros que compunham suas antigas vidas foram pulverizados, restando pouco a que retornar quando a guerra terminar.Nos dois anos desde o ataque do Hamas a Israel, em 7 de outubro de 2023, Israel lançou uma ofensiva militar de grande escala em Gaza, provocando uma destruição sem paralelos recentes. O resultado é uma sociedade desestruturada. Mais de 67 mil pessoas foram mortas — o equivalente a 1 em cada 34 moradores — segundo autoridades locais de saúde.No mês passado, uma comissão das Nações Unidas concluiu que Israel cometeu genocídio contra os palestinos em Gaza. Israel nega a acusação e afirma que seu objetivo é destruir o Hamas e recuperar os reféns capturados no ataque liderado pelo grupo, que matou 1,2 mil pessoas.Na segunda-feira, negociadores israelenses e do Hamas mantinham conversas no Egito sobre uma possível troca de reféns israelenses por palestinos presos em Israel. Um acordo poderia impulsionar o novo plano apresentado pelo presidente Donald Trump para encerrar o conflito após várias tentativas fracassadas.Ainda assim, não está claro quem — se alguém — administraria o território ou financiaria a reconstrução das vidas em Gaza.Enquanto isso, a maioria luta apenas para sobreviver.“Pensar na vida depois da guerra só é possível quando a guerra acaba”, disse Hamza Salem, ex-frentista que perdeu as duas pernas em um bombardeio israelense no início do conflito.Corpos feridos, vidas destruídasAntes da guerra, Salem vivia no norte de Gaza com a esposa e quatro filhos. A caçula, Rital, de 5 anos, gostava de fazer pulseiras de miçangas e havia acabado de começar o jardim de infância.“A vida seguia, graças a Deus”, disse ele.Tudo mudou com a guerra.Nas primeiras semanas do conflito, um ataque israelense atingiu perto de Rital, decepando-lhe o braço direito, segundo Salem e o pai dele, Abdel-Nasr Salem, também ferido na explosão. O Exército israelense disse ter atacado infraestrutura militar do Hamas.Três meses depois, já refugiado no sul de Gaza, Salem foi atingido novamente e precisou amputar as duas pernas acima do joelho.Ambos enfrentam dificuldades para receber tratamento, já que o sistema de saúde de Gaza entrou em colapso.Forças israelenses repetidamente evacuaram, invadiram e bombardearam hospitais, alegando que o Hamas os usa como abrigo. Menos da metade dos 36 hospitais de Gaza funciona parcialmente, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).Com o avanço da guerra, medicamentos se tornaram escassos, e tratamentos de câncer e diálise praticamente desapareceram. Após Israel bloquear toda a entrada de ajuda humanitária na primavera, a fome se espalhou. Em agosto, especialistas internacionais afirmaram que mais de meio milhão de pessoas enfrentavam uma “fome provocada pelo homem”, com casos de desnutrição aguda e mortes por inanição.Um arranha-céu é bombardeado por jatos militares israelenses no oeste da Cidade de Gaza em 5 de setembro de 2025. Dois anos de guerra intensa em Gaza deixaram seu povo com uma sociedade desmembrada e desordenada. A destruição é vasta e muitos moradores de Gaza têm feridas físicas e mentais que podem marcar uma geração. (Saher Alghorra/The New York Times)A desnutrição e o trauma podem afetar o desenvolvimento físico e mental de uma geração, alertam especialistas.“As crianças enfrentam diariamente o risco de adoecer ou morrer”, disse Tess Ingram, porta-voz do Unicef em Gaza. “Esse nível de estresse tóxico não é apenas prejudicial — pode ser fatal a longo prazo.”Autoridades israelenses minimizam a gravidade da fome, dizendo que trabalham para permitir a entrada de ajuda. O governo classificou o relatório sobre a fome como “mentira absoluta”.O Exército israelense afirma que ataca apenas alvos militares e segue o direito internacional. Acusa o Hamas de construir centros de comando, depósitos de armas e túneis de combate em áreas civis densamente povoadas, além de armar casas e ruas.Segundo a OMS, mais de um quarto dos 167 mil feridos em Gaza sofreram “lesões com impacto permanente” e mais de 5 mil perderam membros.Com as fronteiras fechadas, os moradores não conseguem fugir dos bombardeios nem buscar tratamento no exterior.O braço de Rital não pôde ser reimplantado, contou Salem. Por falta de suprimentos hospitalares, ele teve de comprar anestesia e remédios em farmácias locais.A explosão que o feriu o deixou inconsciente. Ao acordar, dez dias depois, já não tinha as pernas.Sem medicação adequada, desenvolveu uma infecção e foi liberado do hospital com dores intensas.A família voltou a fugir em setembro, após nova ofensiva israelense sobre a Cidade de Gaza. Foram a pé até a região central, empurrando a cadeira de rodas em ruas de areia e destroços.Hoje, abrigam-se na casa da irmã de Salem, sem dinheiro, roupas ou tenda caso precisem fugir novamente.“Não temos outro lugar para ir”, disse ele.Comunidades em ruínasA ONU estima que quase 80% dos edifícios de Gaza foram danificados ou destruídos. Em dezembro, o órgão calculou mais de 50 milhões de toneladas de escombros — o equivalente a 105 caminhões trabalhando por 21 anos para limpar tudo. Em fevereiro, o Banco Mundial estimou os danos físicos em US$ 29,9 bilhões, 1,8 vez o PIB anual combinado de Gaza e da Cisjordânia.Mas os números não capturam tudo o que se perdeu. Apague marcos do cotidiano — a mercearia, o café, a barbearia — e a vida como era também desaparece.Para Nidal Eissa, pai de três filhos e dono de uma loja de noivas na Cidade de Gaza, a vida girava em torno do prédio onde morava com 30 parentes. Hoje, está em ruínas, assim como o pomar e os comércios do bairro.“Vivi meus melhores dias nessa casa”, disse Eissa, de 32 anos.A família celebrava nascimentos e casamentos ali. O prédio foi destruído em agosto, após um bombardeio israelense. Eissa e os parentes conseguiram fugir a tempo após o alerta de um vizinho.Agora, vivem em uma tenda no sul de Gaza.“Se a guerra acabar e houver mudança no regime, abrirei um negócio e ficarei no meu país”, disse. “O mais importante é mudar o sistema que nos levou à destruição.”Infâncias perdidasMahmoud Abu Shahma, 14, vive em uma tenda próxima à praia. Passa as manhãs buscando água, faz chá em fogueira de lenha e come pão com especiarias — ou o que conseguir encontrar. Está fora da escola há mais de dois anos.“Se houvesse escola, eu iria”, disse ele.Os pais foram mortos, deixando-o entre os milhares de órfãos da guerra.Segundo a Autoridade Palestina, mais de 39 mil crianças perderam pelo menos um dos pais; 17 mil perderam ambos.Shahma vive em um dos sete campos que abrigam mais de 4 mil crianças órfãs no sul de Gaza. Outras 15 mil dependem desses campos para comer e receber cuidados básicos.Funcionários humanitários relatam casos frequentes de ansiedade, pesadelos e crianças que pararam de falar após traumas severos.Mais de 700 mil crianças estão sem ensino formal. Quase todas as escolas precisam de reconstrução, e todas as universidades estão fechadas, muitas destruídas.Escolas improvisadas surgem em acampamentos. A ONG Mayasem, por exemplo, oferece aulas básicas de árabe, inglês, matemática e ciências.“Aqui, elas podem se sentir crianças”, disse Najla Abu Nahla, diretora da organização.Uma economia em colapsoAntes da guerra, Mona al-Ghalayini era uma das poucas empresárias de destaque em Gaza. Era dona de um supermercado, de um restaurante e do hotel de luxo Roots, à beira-mar.Hoje, quase nada restou.“O supermercado foi saqueado e queimado. O restaurante acabou. O hotel precisa ser reconstruído do zero”, contou por telefone, do Egito, onde se refugiou no início do conflito.Ela abriu um restaurante palestino no Cairo e diz querer voltar, um dia, “quando houver estabilidade, água e luz — os componentes da vida”.Gaza já era pobre antes da guerra, sob bloqueio parcial de Israel e do Egito. Mesmo assim, empresários locais investiam em shoppings, restaurantes e fazendas. A guerra paralisou toda a atividade formal, e o desemprego supera 80%, segundo o Banco Mundial.Mais de 70% dos poços de irrigação, estufas e barcos pesqueiros foram destruídos, e menos de 2% das terras agrícolas seguem acessíveis.O índice de “pobreza multidimensional”, que considera renda, educação e acesso a serviços básicos, deve subir de 64% para 98%.Entre os que tentam se reerguer está Hassan Shehada, 61, dono de uma confecção que empregava mais de 200 pessoas. Um de seus ateliês foi destruído, e outro não consegue operar por falta de eletricidade.Mesmo assim, ele mantém uma esperança improvável:“Israel não pode desistir de nós, e nós não podemos desistir de Israel”, disse. “Sem uma paz real e duradoura, nada vai funcionar.”c.2025 The New York Times Company.The post Dois anos de guerra em Gaza: o cotidiano entre a fome e as ruínas appeared first on InfoMoney.