O brasiliense não dá bom-dia. Por que será? Tenho alguns palpites

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Bom dia! Minha colega de academia sorriu pra mim e eu olhei ao meu redor achando que ela podia estar cumprimentando alguma amiga. Não! Era pra mim o bom-dia. Eu estava sentada no banquinho do lado de fora da academia e ela se sentou ao meu lado.Tentei explicar a minha quase falta de educação, a demora de segundos para responder ao inesperado cumprimento presencial, ao que ela me tranquilizou:– Não se preocupe! Aqui em Brasília ninguém cumprimenta ninguém, como diz uma amiga, o povo aqui é tão seco quanto o clima. Na hora, tratei de anotar mentalmente a analogia perfeita para uma crônica. Leia também Conceição Freitas Frida Khalo, o brasiliense anônimo e a felicidade gigante e redonda Conceição Freitas As meninas de escola pública e um cheiro de esperança no ar Depois de muitos anos sem sair de Brasília, tenho ido às cidades de onde vim, Manaus e Belém e ao Rio de Janeiro, por motivos afetivos e profissionais. Cada vez que vou, cada vez que volto, é um espanto sucessivo. As pessoas dão bom-dia e sorriem em qualquer lugar onde se esteja. No elevador, na padaria, na calçada, no parque, na porta de entrada dos prédios, o bom-dia é tão natural quanto o beijo das formigas que se cruzam entrando ou saindo do formigueiro.Os candangos do tempo da construção de Brasília se lembram, nostálgicos, da atmosfera de cordialidade que havia na cidade empoeirada. É clássica a lembrança do tal espírito Brasília, que Juscelino aproveitou muito bem para manter o entusiasmo dos operários nos canteiros de obras mesmo enfrentando 16 horas diárias de trabalho, comendo mal e morando pior ainda.Não é difícil entender, há uma extensa bibliografia de estudos sobre o espírito e a cosmogonia Brasília. Sim, o que aconteceu neste quadrado goiano entre os anos 1950/1960, foi aquilo que um abade francês que esteve aqui à época chamou de “loucura santa”.O Brasil dos anos dourados, da bossa nova, da vitória na Copa de 58, do presidente simpático, dançarino, seresteiro e sorridente, da arquitetura moderna surpreendendo o mundo, era um Brasil cheio de si, como raras vezes aconteceu na história brasileira. Os brasileiros estavam contaminados de alegria e fé no futuro – finalmente o gigante estava acordando.E, com o dinheiro farto das emissões de moeda – que redundariam lá na frente na inflação, mas essa é uma outra história –, com o dinheiro caindo em cachoeira nas mãos dos empreiteiros, a excitação moveu os candangos, os pioneiros e os piotários, como no título irônico de um livro que apontava a esperteza dos que enriqueceram com a fartança do dinheiro público.Rico, pobre ou remediado, o candango dos primeiros anos de Brasília era um sujeito que dava bom-dia e dava carona. Uma cidade nascente, com menos de 100 mil habitantes nos primeiríssimos anos, era mesmo uma ilha da fantasia. Mas Juscelino foi embora, Jânio não gostava nada daqui e logo depois a ditadura encontrou em Brasília o lugar perfeito para se impor, isolado do resto do país, sem povo na rua, sem muros, com imensa extensão de terra vazia, sem lugar pra se esconder. Era como se a cidade tivesse sido feita com instintos totalitários.Acabou a ditadura, o país voltou a respirar com alegria e liberdade, mesmo nos muitos perrengues pelos quais passou, e Brasília virou outra coisa muito diferente daqueles anos inaugurais, ficou, de muitos modos, uma cidade distópica, portanto, o avesso do espírito que a criou.O substantivo bom-dia nunca mais voltou a Brasília, especialmente nos locais onde a renda é maior. Há no brasiliense uma certa tensão urbana que nada tem a ver com insegurança pública. Comparando-se com as grandes metrópoles brasileiras, Brasília tem a segunda menor taxa de criminalidade (Atlas da Violência 2024).Brasília (considerando Brasília todas as cidades do quadrado) é a cidade mais desigual do Brasil. E uma desigualdade perversamente segregada. Aqui, rico e pobre não se misturam, muito menos branco e preto. A renda média per capita do Lago Sul é mais de 20 vezes maior do que das cidades-satélites mais pobres.O Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Belém, por exemplo, também são cidades desiguais economicamente mas nessas cidades as pessoas sorriem e dão bom-dia quase que automaticamente. Faz parte da genética urbana de seus habitantes entrelaçar bons-dias pra ver se o corre fica menos difícil.Tenho algumas hipóteses para essa fuga do bom-dia: Brasília é uma cidade intimidadora. O desenho diferente de tudo o que conhecemos como cidade, a escala monumental, as vias expressas cortando a cidade, as satélites afastadas umas das outras, a perversa segregação social, o derretimento da utopia, tudo isso deixou o bom-dia sem jeito e ele foi embora.Quando será que o bom-dia vai voltar? Vai voltar?* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.