A jornalista e autora Daniela Arbex, 52, responsável por publicações como “Holocausto Brasileiro” e “Todo Dia a Mesma Noite”, foi reconhecida no Prêmio Jabuti deste ano pelo seu trabalho em “Longe do Ninho”, que recebeu o troféu na categoria de Livro Reportagem.Desta vez, a jornalista se debruçou sobre o caso de 8 de fevereiro de 2019, quando dez garotos da base do Flamengo foram mortos em um incêndio no alojamento do Ninho do Urubu. Após a tragédia, foi apontado que o centro de treinamento onde os jovens dormiam não tinha alvará para funcionar como alojamento. No caso, dezesseis atletas sobreviveram. Relembre o caso aqui. Leia mais Prêmio Jabuti 2025: confira os livros vencedores de todas as categorias “O Ninho: Futebol & Tragédia”: minissérie documental chega à Netflix Documentário "Holocausto Brasileiro" chega à Netflix no domingo “Na verdade, eu sempre digo que não é o jornalista que escolhe a história que ele vai contar. Muitas vezes, ele é escolhido pela história, e eu me sinto assim em todos os livros que publiquei até aqui”, reflete Arbex em entrevista para a CNN Brasil. Seu encontro com a história dos jovens aconteceu ao ser contatada pela mãe de uma das vítimas, que conhecia seu trabalho de denúncia em publicações anteriores.Após meses de contato com a mulher, Arbex recebeu uma foto que a faria decidir mergulhar na história: “Até que, em um dos momentos, ela me manda uma foto do filho, que era goleiro, abraçado com uma bola. E ela me disse que o avô disse para ele que, para ser um bom goleiro, precisava ter intimidade com a bola. A partir daquele momento, ele passa então a dormir com a bola, e isso foi decisivo para que eu decidisse contar essa história. Já que, até o contato dessa mãe, eu não sabia o nome de nenhum dos meninos, das vítimas do incêndio no CT do Flamengo.”A autora recebeu o reconhecimento por seu livro “Longe do Ninho” no Jabuti com uma coincidência temporal: dias após a Justiça decidir absolver os sete réus do caso, o que ela avalia como um indicativo da importância de um livro que eternize a história daqueles adolescentes. “Foi tão bonito que um dos pais disse, quando soube que o livro ganhou: ‘Essa vitória é uma resposta das famílias à Justiça’. Ele chorou e foi muito emocionante. Eu achei isso a coisa mais bonita que eu podia ter ouvido”, declara Arbex.Com seis livros publicados, Daniela se desafia a passar por tragédias que marcaram a história do Brasil, como o rompimento da barragem de Brumadinho (o maior acidente de trabalho do país) e o incêndio da Boate Kiss, em um trabalho que registra nos livros a memória dessas centenas de vítimas, muda narrativas tidas como “oficiais”, tentando “reconstituir o que aconteceu com rigor” e chegar o mais próximo possível da verdade absoluta — por mais que esta seja impossível.‘Escolhida’ desta vez para contar a história dos adolescentes do Ninho do Urubu, Arbex acredita que seu papel — tanto no trabalho quanto na vida — é ajudar na construção da herança intelectual do nosso país. “Eu sou uma construtora da memória coletiva do Brasil, tenho esse compromisso público, que eu assumi, com a construção da nossa memória. A gente tem muitas histórias para contar no nosso país, que também precisa de representatividade”, conclui.Como foi receber o prêmio Jabuti este ano?Arbex: Eu recebi o Jabuti, em 2014, por “Holocausto Brasileiro”, e naquela época, eram premiados o primeiro e o segundo lugar, eu fiquei em segundo lugar e o Laurentino em primeiro. Em 2016, ganhei o Jabuti por “Cova 312” e agora, em 2025, por “Longe do Ninho”. Mas eu confesso que foi uma das maiores emoções da minha vida, por tudo que esse livro envolveu e significou, além de todos os desafios e bastidores que a gente viveu, da qualidade da investigação e da gente ter conseguido derrubar a narrativa oficial do Flamengo, de que os meninos tinham morrido dormindo, como se isso minimizasse alguma dor. Então, assim, realmente, de todas as vezes que eu participei do Jabuti, essa foi a que mais me emocionou. Até porque foi a primeira vez, das que eu participei, que o resultado era dado ao vivo. Então, haja coração. Nossa! Quase infartei.Em outubro, a Justiça decidiu pela absolvição dos réus no caso do incêndio no Ninho do Urubu – decisão que o Ministério Público já recorreu. Dias depois, seu livro ganha um dos principais prêmios de literatura do país. Apesar de ser apenas uma coincidência de momento, como você vê essa relação?Arbex: Eu acho que, na verdade, isso só ressalta a importância do livro. Quando a Justiça não cumpre o seu papel, quando falta justiça… e a gente é tão carente de justiça, felizmente, ainda há a memória. E “Longe do Ninho” é um registro fundamental sobre o que aconteceu dentro do Ninho do Urubu no dia oito de fevereiro de 2019 e jamais será esquecido.Toda a minha trajetória no jornalismo, esse ano eu completei 30 anos de carreira, me mostra que, se uma história não é contada, é como se ela não tivesse existido. Felizmente, essa história está contada para além de qualquer tipo de cegueira da justiça, porque as provas estão todas lá, tanto no livro, quanto no processo. Dizer que a perícia foi inconclusiva, é faltar com a verdade, ela apontou problemas graves dentro do contêiner. Em relação aos materiais, que não eram antichamas, a impedimentos de fuga dos meninos, porque todas as janelas estavam gradeadas, de uma única porta de saída e entrada que não era centralizada. Então eu acho que é uma grande vitória e também uma resposta.Foi tão bonito que um dos pais disse assim, quando soube que o livro ganhou e ele tava num podcast, e chorou muito ao vivo também, foi muito emocionante. Ele disse assim: “Essa vitória é uma resposta das famílias à justiça”. Eu achei isso a coisa mais bonita que eu podia ter ouvido.Você já teve como tema de estudo a boate Kiss, a barragem de Brumadinho, o hospital colônia de Barbacena, e agora a tragédia no Ninho do Urubu. Como é a escolha de uma história para você contar? O que te levou a escolher o caso dos meninos do CT do Flamengo para um novo livro? Arbex: Na verdade, eu sempre digo que não é o jornalista que escolhe a história que ele vai contar. Muitas vezes, ele é escolhido pela história, e eu me sinto assim em todos os livros que eu publiquei até aqui. Cada um desses livros nasceu para mim em um momento específico. No caso de “Holocausto brasileiro”, por exemplo, a gente foi contar essa história a partir do momento que eu tive acesso às fotos que foram feitas dentro do hospital por um fotógrafo chamado Luiz Alfredo, fotos que foram tiradas em 1961, que eu tive acesso 50 anos depois. E a primeira coisa que eu quis foi encontrar os sobreviventes a partir dessas imagens. Já em “Arrastados“, o livro nasce para mim no momento em que os pais e os familiares de uma engenheira chamada Izabela Barroso Câmara Pinto, considerada desaparecida pela Vale, desde o primeiro momento do rompimento da barragem, me enviaram uma mensagem nas minhas redes sociais, um pedido de ajuda para localizar a Izabela. Ao pedir, eles me mandaram uma foto dela: uma menina muito bonita, vestida de noiva, e isso realmente me atravessou, muito jovem. E eu pensei: “Meu Deus, qual é a história por trás dessa imagem?”. E com todos os outros livros aconteceu dessa forma. Em “Longe do ninho”, eu fui procurada pela mãe de uma das vítimas, de um dos meninos, que me viu dando uma entrevista para um programa em rede nacional e falou que já tinha ouvido falar do meu trabalho, estava lendo tudo sobre luto… e a gente começou a se comunicar durante meses. Até que num dos momentos ela me manda uma foto do filho, que era goleiro, abraçado com uma bola. E ela me disse que o avô disse para ele que, para ser um bom goleiro, precisava ter intimidade com a bola. A partir daquele momento, ele passa então a dormir com a bola e isso foi decisivo para que eu decidisse contar essa história. Já que, até o contato dessa mãe, eu não sabia o nome de nenhum dos meninos, das vítimas do incêndio no CT do Flamengo. Em seus livros, você já pesquisou histórias do passado e já mergulhou em casos quase em “tempo real”. Quais as diferenças entre essas duas pesquisas? Alguma é mais desafiadora?Arbex: Na verdade, para você reconstituir uma história, e geralmente histórias tão densas quanto as que eu conto, existem muitos desafios. No caso de “Holocausto Brasileiro”, era algo que aconteceu num passado mais distante e isso me deu um tempo para olhar o que aconteceu com distanciamento histórico. E aí esse distanciamento, às vezes, te ajuda a enxergar melhor.No caso do rompimento da barragem de Brumadinho, da Boate Kiss e do Ninho do Urubu, eram tragédias muito recentes na nossa história e que estavam muito próximas de nós, nas quais qualquer um de nós podia ter perdido alguém que amava. E isso também é desafiador porque tem uma questão emocional que te aproxima muito das vítimas, dos familiares… e a gente acaba sendo atravessado por essa dor.Mas, em todas essas histórias, o maior desafio foi conseguir reconstituir o que aconteceu através de uma investigação muito rigorosa, que nos permitiu não apresentar a verdade absoluta porque isso é impossível, mas nos aproximar ao máximo da verdade. No caso de “Arrastados”, era uma tragédia em escala industrial pelo número de mortos, pelo tamanho das áreas atingidas… e isso foi realmente algo que eu nunca tinha experimentado na minha carreira. A gente entrevistou mais de 150 pessoas. Já no Ninho do Urubu, a gente tinha 10 famílias, todas muito traumatizadas, e algumas queriam falar, outras não. O desafio foi fazer com que as 10 famílias falassem porque não era uma história de nove meninos, nem de cinco meninos, é uma história de 10 meninos e todos eles mereciam ter as suas memórias honradas.Você tem vontade de se aventurar na investigação de casos internacionais? Se sim, existe algum em sua mente?Arbex: Eu tenho muito desejo de contar histórias de outros lugares do mundo, acho que uma coisa que me atrai muito é a Segunda Guerra Mundial. Mas eu sou uma construtora da memória coletiva do Brasil, tenho esse compromisso público, que eu assumi, com a construção da nossa memória. A gente tem muitas histórias para contar no nosso país, que também precisa de representatividade. Só para dar um spoiler, o meu novo livro se passa em vários lugares do mundo, posso falar isso.Estou em fase de começar a escrever. É um livro que a gente pretende lançar no ano que vem, no segundo semestre de 2026. Um livro muito potente que passa por uma jornada muito importante, acho que que muitas de nós ou todos nós vamos nos identificar, mas eu não posso revelar nada ainda.Você já viu suas produções serem adaptadas para o audiovisual tanto como ficção quanto como documentário. Como é ver suas obras ganharem novos formatos e públicos? Você se envolveu nessas novas linguagens?Arbex: A adaptação dos livros para o audiovisual é algo para o autor de um ganho social inimaginável porque é a oportunidade que a gente tem de contar as histórias para o maior número de pessoas, alcançar milhões, como foi o caso da série de ficção “Todo Dia a Mesma Noite”, adaptação do meu livro homônimo que fala sobre a Boate Kiss. Uma série cujo sucesso surpreendeu a própria Netflix, a gente ficou no top 10 mundial, das séries mais vistas no mundo. Ficamos no top 10 de países que nem sonhávamos e imaginávamos que podia ficar como Holanda, Bahamas, Portugal… Isso foi realmente impressionante e eu acho que também deu um recado claro para a indústria do entretenimento de que nós brasileiros queremos nos ver nas telas, sabe? Foi muito importante, acho que foi uma virada de chave aí.Em relação aos outros livros também, ao Holocausto Brasileiro, que foi adaptado para HBO e agora está no catálogo da Netflix. Nesse momento, “Arrastados” está em adaptação pelo Globoplay para uma série documental de seis capítulos. Em todas as produções, eu estive presente não só como autora do livro, mas como consultora criativa. Isso é uma exigência para que a gente possa falar sobre essa venda de direitos, a cessão de direitos para TV. Porque, como autora, eu também tenho um compromisso com as histórias que eu conto e com as pessoas que são retratadas nessas histórias e eu tenho que cuidar para que isso saia da forma mais fiel e digna possível.Bienal do Livro Rio 2025: confira os livros mais vendidos no evento