Na manhã em que Catherine Connolly tomou posse, Dublin acordou com aquela luz baça que parece sempre hesitar entre o cinzento e o dourado. Havia grupos de turistas a caminhar como se nada fosse, estudantes a correr para as aulas, e depois havia ela, esta mulher de 68 anos, vinda da costa oeste, da chuva persistente de Galway, a erguer-se no Castelo de Dublin como se estivesse a devolver à paisagem qualquer coisa que há muito lhe faltava.Connolly foi eleita com mais de 63% dos votos, e há números que não precisam de explicação: falam por si. Este resultado não caiu do céu, cresceu de um país consciente dos desafios do mundo, atento às políticas que já não conseguem escutar o batimento dos que vivem à margem, dos que trabalham duas vezes mais para ter metade do que tinham. E ela surge, de cabelos brancos e passo tranquilo, a prometer uma presidência «para todos», com a serenidade de quem sabe que a neutralidade irlandesa vai longe e atravessa o tempo. É pois uma herança emocional. Uma herança de todos.As raízes que não se cansam de chamarConnolly nasceu em Galway, numa família que falava gaélico. Quem a ouve percebe logo que carrega ali qualquer coisa que resiste ao desgaste dos anos. Não é folclore, é identidade. Psicóloga clínica, depois advogada, mais tarde deputada independente: não fez carreira a subir degraus. Fê-la a abrir portas que estavam fechadas para muita gente.As causas que defende não são slogans, mas fios que ela própria puxa com paciência: direitos humanos, igualdade, habitação, justiça social, proteção de quem vive sem voz. A sua visão socialista não tem o ruído de certas esquerdas fatigadas, alberga antes o rigor de quem estudou pessoas antes de estudar políticas. E o seu pacifismo não soa ingénuo. Soa ao peso da história irlandesa.É por isso que fala da NATO com desconfiança, da militarização europeia com cautela. O país sabe o que custa uma guerra, mesmo quando já só vive dela nos livros. E quando Connolly fala da reunificação da ilha, fá-lo como quem observa um rio que sempre correu num só sentido, apesar das curvas impostas.Um país cansado de portas invisíveisA Irlanda vive este momento como quem olha para um espelho que ora devolve orgulho, ora devolve exaustão. O país cresceu, modernizou-se, atraiu empresas tecnológicas e turistas, mas uma parte crescente da sua juventude perdeu o direito de dormir descansada. Quase 70% dos jovens de 25 anos ainda moram com os pais, muitas vezes por razões financeiras.A habitação tornou-se uma miragem para quem quer voar: as rendas dispararam mais de 90% desde 2012, segundo dados oficiais, e muitos jovens sentem que a sua única escolha é dividir quartos ou permanecer na casa familiar.A eleição de Connolly chegou nesse quadro: um grito baixo, mas firme. A esquerda, fragmentada tantas vezes, uniu-se numa voz de convicções longas e passos curtos. Talvez por isso tenha tanta força.Um cargo que pesa mais pelo que simboliza do que pelo que decideA presidência irlandesa é uma cadeira que não manda. É um ofício cerimonial, quase litúrgico, onde o poder é feito de gestos, não de decretos. Connolly sabe isso. Não vai reorganizar orçamentos, nem vetar o que não gosta, nem determinar a política externa do país. Mas pode dificultar silêncios, pode dar nome aos esquecidos, pode tornar visível o que muitos preferiam deixar em segundo plano.O desafio não é pequeno: transformar o pouco poder formal numa força ética que não se deixe engolir pela cortesia típica das instituições. Há quem tema as suas posições sobre política externa, quem veja nelas um atrito possível com aliados, quem a olhe com desconfiança por falar da Palestina sem rodar as palavras primeiro num filtro diplomático. Mas ela não parece preocupada com isso. A verdade tem-lhe sido companhia demasiado antiga para a abandonar agora.O país que ela encontra e aquilo que promete devolverCatherine Connolly entrou na Presidência e não veio com promessas detalhadas ou mapas de ação. Veio com olhares, silêncio, atenção. Falou de vozes apagadas, de aldeias esquecidas, de janelas sujas de histórias. E, no mesmo fôlego, lembrou que o cargo não é só cerimónia: é poder de atenção, é moral, é luz.A crise climática apareceu entre linhas, pois a Irlanda, disse, respira por ela, e as decisões do presente marcam a respiração das próximas gerações. Abordou a justiça social, a dignidade no trabalho, de territórios que precisam ser cuidados como se estivessem vivos. Nenhuma pressa, nenhuma encenação. Apenas convicção. A Irlanda que recebe não é perfeita, não é inteira. Mas pode começar a recompor-se, uma fenda de cada vez.O retrato no fim do diaCatherine Connolly não é uma figura luminosa no sentido tradicional. Não tem a grandiloquência dos políticos que se fotografam ao lado de bandeiras. O seu brilho é outro: vem da austeridade, do chão rugoso de Galway, da língua que aprendeu em criança, do estudo das dores alheias, da recusa em tratar a política como espetáculo.Representa uma Irlanda que não quer ser apenas moderna, quer ser justa. Uma Irlanda que percebe que crescer não basta se deixar metade do país para trás. Uma Irlanda que, apesar das contradições, continua a procurar uma forma de ser inteira.E talvez seja essa a força dela: não chega com promessas impossíveis. Chega com uma delicada ferocidade, como quem limpa o pó de um móvel antigo para descobrir que afinal ainda tem brilho. Uma mulher que, no centro da cerimónia, parecia trazer consigo a brisa húmida do Atlântico e a vontade, discreta mas firme, de que a República ainda pode ser para todos.Fotografia: October 25, 2025. REUTERS/ClodaghO conteúdo A ascensão serena de Catherine Connolly, a nova voz da Irlanda aparece primeiro em Revista Líder.