A América é uma boca aberta para o mundo. Todos os dias, dezenas de navios atracam em portos carregados de mercadorias que atravessaram oceanos para aterrar nos armazéns e prateleiras americanas: aviões, perfumes, vacinas, café, carne, computadores, diamantes. Cada contentor pode valer cem milhões de dólares. Cada descarga é um pedaço de planeta a alimentar o apetite dos Estados Unidos. Mas agora, com Trump na Casa Branca, cada carga tem também uma sombra: tarifas que podem encarecer o luxo, mexer no preço do café, travar a circulação de medicamentos. Afinal, quem alimenta os Estados Unidos da América?Este artigo parte de outro elaborado pela Reuters.Primeira paragem: luxo e sofisticaçãoO cais cheira a vinho, a couro e a perfume francês. É da Europa, de França, que partem para os EUA aviões com o valor de 3,2 mil milhões de dólares (quase 3 mil milhões de euros), com frascos de Chanel e Dior avaliados em 2,8 mil milhões, cosméticos de 990 milhões e malas de 598 milhões. Garrafas de conhaque viajam lado a lado com barricas de vinho — 1,3 mil milhões num caso, 2,6 mil milhões no outro. Um império de glamour atravessa o Atlântico, embalado em paletes e selado a plástico.Mas o brilho tem preço. Trump impôs tarifas de 15% sobre produtos europeus — e o que era luxo pode transformar-se em luxo proibitivo. Ainda assim, os americanos continuam vorazes. Por exemplo, só nos últimos cinco anos, ficaram com 85% das exportações globais de metais preciosos e metade dos diamantes do planeta.Itália, Suíça, Índia, Canadá — todos contribuem para manter a vitrine acesa. As marcas sabem disso. Louis Vuitton e Chanel já aumentaram preços, tentando manter margens, mesmo que isso afaste os mais jovens. É um jogo de sobrevivência num mercado onde status vale tanto como ouro.Segunda paragem: sabores e recursos naturaisMudemos de porto. O ar é denso, mistura de café cru e petróleo: chegámos ao Brasil. Em 2024, os EUA importaram daqui 30% do café que consomem (1,9 mil milhões de dólares), 4% do petróleo bruto (6,7 mil milhões), 80% do ferro semiacabado (1,8 mil milhões) e 83% da polpa de madeira (1,4 mil milhões). À mesa dos americanos sentaram-se também 1,1 mil milhões em sumo de laranja e 900 milhões em carne bovina congelada. Mas a tensão entre Estados Unidos e Brasil nunca foi tão grande e a crescente tensão promete alterar as trocas comerciais entre os dois gigantes do novo mundo.Ainda assim, a América Latina é a despensa fresca dos Estados Unidos. Bananas, abacaxis, abacates, espargos, pepinos e pimentos chegam quase todos do sul. Mas há um travão, como já o dissemos, já foram implementadas tarifas de 40% sobre produtos brasileiros — à exceção do sumo de laranja, ferro, polpa de madeira e petróleo — que encarecem o café e a carne. Enquanto isso, México e Canadá, amparados por acordos comerciais, escapam à sobretaxa e ganham espaço no mercado.Terceira paragem: tecnologia e inovaçãoRumo à Ásia, onde o pulso da tecnologia dita o compasso. O Vietname ascendeu a fornecedor-chave dos Estados Unidos. Só em 2024 enviou 13,5 mil milhões de dólares em portáteis, 3,2 mil milhões em auscultadores e 5,5 mil milhões em painéis solares, dominando este último setor. Quase dois terços do calçado desportivo usado pelos americanos saem de fábricas vietnamitas — incluindo metade dos ténis Nike, avaliados em 2,6 mil milhões.Mas é a China que continua a impor a escala. De lá chegam 90% dos micro-ondas, torradeiras e LEDs, além de secadores de cabelo, moedores de alimentos e máquinas de barbear — todos agora sujeitos a tarifas de 30%. O grosso dos smartphones também é chinês, cerca de 80%. Ainda assim, por enquanto, telemóveis e portáteis estão fora da lista de sobretaxas.Quarta paragem: Irlanda — vacinas, medicamentos e prótesesA viagem termina num porto mais discreto, mas talvez o mais vital: a Irlanda, epicentro da exportação farmacêutica para os EUA. Em 2024, os números impressionam: 9,2 mil milhões de dólares (8,6 mil milhões de euros) em medicamentos, incluindo o Keytruda, da Merck, hoje o fármaco mais vendido do mundo. Somam-se 4,3 mil milhões em vacinas, metade das próteses articulares (1,9 mil milhões) e um terço das lentes de contacto importadas (230 milhões).Nos últimos dez anos, as exportações irlandesas para os EUA triplicaram, atingindo os 50 mil milhões de dólares em 2024. Mas este fluxo vital não escapa às tensões: como parte da União Europeia, também enfrenta tarifas de 15%. Fora do bloco, a Suíça surge como o segundo maior fornecedor, ainda livre de tarifas, mas sob a sombra de uma investigação americana que pode mudar as regras do jogo.Um mundo interligadoDo luxo francês ao café brasileiro, dos ténis vietnamitas às vacinas irlandesas, os EUA são hoje dependentes de uma teia global complexa, onde cada porto é uma veia a alimentar a economia americana. Mas as tarifas da administração Trump — ora impostas, ora suspensas, ora renegociadas — são mais do que simples números: são placas tectónicas a mover as bases do comércio mundial.Para os consumidores, significa que o preço de um perfume, de um par de ténis ou até de um medicamento pode disparar. Para os países exportadores, é o equilíbrio entre oportunidade e risco. Num mundo cada vez mais fragmentado, saber de onde vêm os bens que consumimos não é apenas curiosidade: é compreender como se desenha a geopolítica na nossa mesa, no nosso armário e até no nosso corpo.O conteúdo Luxo, café e tecnologia sob tarifas: quem alimenta os EUA? aparece primeiro em Revista Líder.