Sonhos destruídos: o impacto dos novos testes de sexo no atletismo feminino

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A corredora ugandense Docus Ajok sonhava em ser campeã olímpica. Ela competia profissionalmente desde 2014, representando seu país com orgulho nos Jogos da Commonwealth, no Mundial de Atletismo e nos Jogos Universitários Mundiais.Em 2019, ela afirmou que foi solicitada a realizar um teste de testosterona pela federação nacional, sob a direção da entidade mundial do atletismo, a World Athletics (WA).Parecia tão rotineiro quanto qualquer outro procedimento em sua carreira até então, mas seria o fim de tudo o que conhecia profissionalmente.Pouco depois, Ajok disse que foi informada pela Uganda Athletics de que não poderia mais competir nas provas de 800 m e 1.500 m, citando diretrizes da WA. Leia mais Alison dos Santos conquista medalha de prata no Mundial de Atletismo Teste de comprovação de sexo gera confusão antes do Mundial de Atletismo World Athletics exige teste genético para mulheres competirem no atletismo Resultados do teste nunca foram apresentadosEla afirmou que nunca lhe mostraram os resultados do teste, mas, impedida de competir, seus sonhos ficaram destruídos.“Depois do teste, fui restringida de competir. Começaram a surgir regras e regulamentos propondo etapas médicas”, acrescentou.“Eu costumava ajudar minha família com contas médicas, mensalidades escolares, com meus irmãos e muitas outras coisas, até mesmo comigo mesma. Agora não estamos recebendo nada. Estamos apenas lutando para sobreviver.”A corredora Docus Ajok, de Uganda, ao conquistar a medalha de bronze nos 800 metros da Universíade de Verão, na Itália, em 2019 • Ivan Romano/Getty Images“Ninguém luta por mim”A história de Ajok é similar à da velocista queniana Maximila Imali, que mostrava grande potencial no atletismo e se classificou para os 800 metros no Mundial Júnior, destacando-se nas eliminatórias, mas caindo na final. Determinada a melhorar, ela tinha planos de participar de mais competições.Mas, em 2014, tudo isso foi interrompido quando, segundo ela, um funcionário da Athletics Kenya solicitou que fizesse um exame de sangue e uma avaliação física, a pedido da IAAF, atualmente World Athletics.Meses depois, seu gerente ligou para avisar que ela não poderia competir nos 800 m, citando altos níveis de testosterona no sangue. Ele listou todas as provas em que não poderia participar e compartilhou uma carta da IAAF explicando os regulamentos.“Minha carreira acabou assim, de repente. Ninguém luta por mim. Meu país me deixou como estou. Sou apenas um passado — não sou mais a pessoa que trazia glória para o país.“Agora não posso fazer nada. Não consigo sustentar a mim ou à minha família; minha família depende de mim. Tenho um filho que depende de mim. Atletismo é tudo que tenho.”Caio Bonfim faz história e conquista a prata no Mundial de AtletismoNovas regrasAssim como Ajok e Imali, várias atletas não poderão mais competir na categoria feminina nos Mundiais de Atletismo, atualmente em andamento em Tóquio, Japão.A World Athletics anunciou que, a partir de 1º de setembro, qualquer atleta que quiser competir na “categoria feminina” de eventos de elite precisará realizar um “teste único na vida”, por swab bucal ou exame de sangue, que analisará amostras genéticas para verificar se possuem o gene SRY — ou “um substituto genético para o cromossomo Y”.A decisão segue reunião do Conselho da World Athletics, que aprovou várias condições de elegibilidade para a categoria feminina.O que é o gene SRY?A maioria das pessoas com o gene SRY vive como homem, mas há exceções.“O gene SRY é um gene chave, provavelmente o mais importante, no cromossomo Y, que direciona o embrião para o desenvolvimento masculino”, explicou Alun Williams, professor de genomia do esporte na Manchester Metropolitan University.“Mas há algumas exceções — uma proporção muito pequena — e é aí que a coisa se complica.”A queniana Maximila Imali se prepara para uma prova nos Jogos da Commonwealth, na Inglaterra, em 2022 • Tim Clayton/Corbis via Getty ImagesProblema é maior no Sul GlobalVariações na expressão do gene SRY são apenas uma das muitas variações naturais de cromossomos, hormônios e anatomia humanas. Pessoas com essas variações são às vezes chamadas de intersexo ou com diferenças no desenvolvimento sexual (DSD).Estima-se que entre 0,02% e 2% da população tenha diferenças no desenvolvimento sexual, dependendo da definição. Com mais de 8 bilhões de pessoas no mundo, isso pode afetar dezenas de milhões.Payoshni Mitra, diretora da organização de direitos de atletas Humans of Sport, afirmou que nem sempre as atletas sabem que têm DSD.“De forma desproporcional, essas regras impactam há décadas atletas do Sul Global. Nesses países, não há apoio para entender exatamente o que está acontecendo.”Definições da World AthleticsSegundo os regulamentos da WA:“Masculino biológico” significa alguém com cromossomo Y.“Feminino biológico” significa alguém sem cromossomo Y, independentemente do sexo legal ou identidade de gênero.Williams explica que algumas pessoas com gene SRY funcional, mas variações raras em outros genes, podem se desenvolver essencialmente como mulheres, apesar de terem o SRY.Política e escrutínio internacional levaram associações a adotar abordagens diferentes para permitir ou excluir mulheres com DSD nas competições femininas.Mulheres com DSDAs novas regras da WA afirmam que masculinos biológicos que não passaram por desenvolvimento sexual masculino ou puberdade masculina ainda podem competir na categoria feminina.Mulheres com DSD que atendiam às regras anteriores podem competir nas World Rankings Competitions, desde que mantenham testosterona abaixo de 2,5 nmol/L e cooperem totalmente com a monitorização da WA.Atletas DSD que não têm síndrome de insensibilidade completa a andrógenos e não competiram antes não poderão disputar as classificações mundiais femininas. Isso significa que algumas atletas emergentes DSD podem nunca participar de corridas femininas de elite.Histórico polêmicoNa década de 1960, testes de sexo foram introduzidos para restringir algumas mulheres, alegando, sem evidências, que eram homens.1966, Budapeste: exame visual de genitália e características secundárias (“desfiles nus”).1968, Olimpíadas México: teste de Barr body via swab bucal, mais objetivo e “digno”.Críticas recentes apontam que os testes de Barr eram imprecisos e prejudiciais.Hoje, a WA realiza testes PCR obrigatórios para identificar o gene SRY, mas especialistas chamam de “absolutamente condenável”.“Não é totalmente voluntário. Para competir em alto nível, você precisa desse teste. Não é para benefício do atleta”, opina Arne Ljungqvist, ex-diretor da comissão médica do Comitê Olímpico Internacional (COI).“O impacto para essas pessoas é enorme. Precisa haver justificativa extrema que supere as consequências que mudam vidas.”Dever de cuidadoMitra alerta que a exposição pública de atletas por causa dos testes ocorre antes de grandes competições, como Mundiais ou Olimpíadas.“Atletas vão ser prejudicadas, expostas e escrutinadas. Muitos vêm de países com menor proteção de direitos humanos, especialmente pessoas percebidas como LGBTIQ.”Complicações que mudam vidasAjok afirmou que foi informada em 2019 que deveria tomar medicação ou mudar de prova.Sua amiga, também atleta, relatou efeitos devastadores de medicação e cirurgia: dores corporais, insônia e suor noturno, causando desorganização do corpo.A WA afirmou que nunca sugeriu cirurgia ou intervenção médica para atletas DSD competirem na categoria feminina.Ajok não quer medicação ou cirurgia:“Não é certo mudar meu corpo porque a mudança que querem que eu faça não é saudável para mim. Se quisessem que estivéssemos vivas, não poderiam nos obrigar a tomar remédio. Eles viram quem tomou e como estão sofrendo.”“Suposta ciência”Imali sente o mesmo:“É muito doloroso alguém decidir quem você deve ser. Para mim, estou bem como sou. Nenhum médico pode fazer procedimentos em mim sem meu consentimento. Não estou doente. Então por que vêm me tratar?”Eu escolho não fazer nada, nenhum medicamento ou procedimento, porque sei que nasci mulher. Fui criada como mulher… essa suposta ciência não pode decidir por mim.”