Investigações obtidas pelo GLOBO revelam como o crime organizado do Rio se apropriou de ferramentas de comunicação para negociar armas, munições, planejar roubos e gerir bocas de fumo. Sem medo de serem flagrados, integrantes de grupos de Whatsapp negociam ilícitos abertamente, como se fosse um mercado legal.Numa das investigações — sobre o envolvimento de traficantes do Espírito Santo no crime do Rio —, a polícia capixaba desvendou uma rede paralela de negociações que atua na cidade. O material mostrou como os criminosos usam a tecnologia para ampliar os lucros, realizar transações entre diferentes facções e divulgar produtos.Com a quebra do sigilo telefônico de um traficante local, a polícia teve acesso a pelo menos seis grupos diferentes: Desapegando do Complexo, Tropa do Grau, Joga pra Rolo RJ 2.0, Joga pra Rolo 2.0, Bom Negócio da Maré e Mercado Negro Zona Norte.O relatório, ao qual o GLOBO teve acesso com exclusividade, mostra que os produtos eram revendidos para diferentes organizações criminosas, como Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA). Em um dos grupos, a orientação de um dos integrantes foi para que membros de determinada facção “comprem dentro do quadrado”, em referência à prioridade de negociação na própria organização. A mensagem, no entanto, também indica que as vendas estavam abertas aos integrantes de bandos rivais.“Mano, sou adm e sou da Nova Holanda. Tem gente aqui que não leva facção. Aos que seguem, só comprar dentro do quadrado. Aos que não, forte abraço e seguir em paz. Segurança de todos, seja CV, TCP, ADA”, escreveu o administrador do grupo Joga pra Rolo 2.0, em mensagem enviada no dia 30 de setembro aos 128 integrantes.Para os investigadores, a mensagem estabelece diretrizes para as negociações e garante que as transações ocorram independentemente da facção criminosa, o que contribui para o fortalecimento do crime organizado.“O conteúdo das mensagens trocadas no grupo Joga pra Rolo 2.0 revela que a principal finalidade do espaço é a compra e venda de armas, drogas e outros materiais ilícitos, viabilizando o tráfico de drogas, homicídios e ações contra as forças de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”, afirma um trecho da investigação.Gestão onlineUma conversa obtida pela polícia mostra um dos integrantes do grupo, identificado como “Deus é Fidel”, oferecendo armas, munições e equipamentos bélicos. Na mensagem, enviada no dia 23 de janeiro deste ano, ele escreve: “Acessórios e peças para fuzil e pistola, melhor preço aqui”.Entre os itens à venda estão bandoleiras, coldres, rádios, coletes, roupas camufladas, lunetas, granadas e vestimentas táticas. Também há oferta de munições dos calibres 9 mm, .40, .380, .45 e 7,62.Todos os anúncios são acompanhados de emojis de coração e carinhas felizes, o que, segundo os investigadores, reforça a “habitualidade e a naturalização dessas transações no ambiente do grupo”.As drogas são oferecidas em vários horários do dia, com propaganda e fotos. “Maconha top, preço justo, vem”, escreveu um usuário em mensagem enviada no dia 30 de outubro do ano passado. Naquela época, o quilo da droga era oferecido no grupo por cerca de R$ 1.200.A oferta foi divulgada para mais de 1.400 integrantes. De acordo com a polícia, no fim do ano passado, o grupo acumulava mais de 50 mil mensagens, a maioria voltada para o abastecimento de drogas e armamentos.A partir de um dos vendedores, identificado nos grupos como “Marrento”, a polícia conseguiu mapear como ocorriam as negociações para a compra. A divulgação da droga no grupo e a tratativa efetiva da venda eram iniciadas por mensagens privadas. Depois, a entrega era agendada, e a retirada acontecia na favela da Nova Holanda.Procurado pela polícia, livre nos grupos de WhatsappUma outra investigação, a Polícia Civil do Rio chegou ao celular usado por Carlos da Costa Neves, o Gardenal, um dos chefes do CV, que continua foragido. Ele era um dos alvos da megaoperação nos complexos da Penha e Alemão, em outubro, mas não foi encontrado pela polícia. Conforme revelou o GLOBO, a análise do aparelho mostra que a facção tem uma rede de olheiros espalhados pela cidade que acompanha a movimentação de tropas policiais e até do Exército e Ministério Público em todo o Rio.A extração do conteúdo do celular mostra que Gardenal também comandava bocas de fumo mesmo à distância. A movimentação do Morro do Juramento, em Vicente de Carvalho, ele acompanhava pelo FML Juramento e pelo CP J2. Já as favelas do Guaporé e Quitungo, na Zona Norte, eram monitoradas por meio de outros dois grupos: “Diretoria QTG GP” e “Família Quitungo & Guaporé”.Mas não foi só o tráfico que se apossou das novas tecnologias para gerir seus negócios. Uma investigação da 14ª DP (Leblon) descobriu que uma quadrilha especializada em roubar joias e relógios de luxo planejava os crimes pelo Whatsapp. Fabio Aguiar Correa, Luis Henrique da Silva, o Magrão, e Bruna França Nunes foram condenados pelo roubo a um pedestre na Rua Professor Arthur Ramos, no Leblon, Zona Sul do Rio, no ano passado. Segundo as investigações, o trio monitorou a vítima até abordá-la para roubar um Rolex e um anel de ouro avaliados em R$ 64 mil.Após a prisão, Bruna confessou na delegacia que o trio se preparava para assaltos criando grupos no Whatsapp. Depois do crime, eles apagavam provas “para não restar nenhuma pista”. Ela tinha a função de identificar possíveis vítimas e seguir, até que os homens as assaltassem. Depois, um comparsa vendia o material na Uruguaiana, no Centro.Privacidade em xequeEm meio as discussões entre privacidade e quebras de sigilos para coibir práticas criminosas, Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), explica que é preciso discutir maneiras de permitir uma investigação célere de infrações penais.— Tudo mudou com essas novas tecnologias, e era de se esperar que com a criminalidade não seria diferente. Há duas vertentes: uma é o uso dessas novas formas para uma comunicação instantânea e rápida, com a gestão do tempo eficiente para esses negócios criminais. Mas há também um outro tipo de apropriação que muda a natureza da atividade criminal, como o delivery de drogas e armas, a venda pela internet e até mesmo alguns tipos de estelionatos que passaram a ocorrer pelo mundo virtual — explica.Filipe Medon, professor de Direito Civil da FGV Direito Rio e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da mesma instituição, explica que o avanço da criptografia nos aplicativos impede as interceptações clássicas, como feita por telefone no passado.No Supremo Tribunal Federal ainda se discute se as empresas são obrigadas ou não a quebrar as conversas criptografadas e enviar os dados às autoridades policiais.— É um caso de bola dividida. Há o argumento de que as empresas precisam criar um mecanismo que permita uma quebra de sigilo eventual para a repressão a um crime. Outra linha, sobre a privacidade, diz que se você abre para um, pode abrir para outros — diz Medon. — Nesse caso, com o tempo, as pessoas poderiam perder a confiança de se comunicar com a certeza de que não há ninguém do outro lado da linha lendo as conversas e as impedindo de exercerem sua liberdade.Procurada, a Meta não respondeu aos contatos da reportagem.The post Investigações revelam como o crime organizado usa o WhatsApp para fazer negócios appeared first on InfoMoney.