O grande acordo (por João Bosco Rabello)

Wait 5 sec.

Em que pesem as repercussões negativas — muitas delas legítimas —, as negociações que levaram à aprovação, pelo Senado, do projeto de lei da dosimetria restrito ao 8 de janeiro, representam um hiato surpreendente em um longo período no qual a violência substituiu a política.A saída consumada talvez nos coloque diante de um episódio clássico de realpolitik — expressão alemã que se traduz por pragmatismo absoluto, ou pela política como ela é, quando falta oxigênio para decisões dentro do padrão formal de funcionamento das instituições.É precisamente esse cenário que já se instalara. A crise entre os Poderes alcançara um estágio em que a prevalência do extremismo criara um ambiente de guerra autofágica, cujo saldo seria negativo para todos os envolvidos.É nesses momentos que os movimentos se tornam menos visíveis, os bastidores passam a operar com intensidade e cessam as declarações aleatórias.Nesse contexto, vale recapitular os movimentos e falas mais recentes — uma espécie de senha em que atores veteranos cumpriram seus papéis em um roteiro de costura tão rápida quanto cirúrgica.Coube ao presidente da CCJ, senador Otto Alencar, o diagnóstico sobre o projeto vindo da Câmara: “Não me consultaram, é inaceitável”. Ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre — em conflito aberto com o presidente Lula e que mantém boa relação com Otto —, o aviso direto: “Não haverá adiamento”, como desejava a base governista.Ao senador Esperidião Amin, relator da matéria na CCJ, coube restringir o alcance do texto aos condenados pelos atos de 8 de janeiro, abortando a má-fé de setores da Câmara que haviam produzido uma versão estendida ao crime organizado.São os mesmos setores que tentaram barrar investigações da Polícia Federal sobre parlamentares — não por acaso, quando operações de inteligência integradas passaram a revelar digitais e vínculos entre o crime organizado, o mercado financeiro e o Congresso Nacional.Essas conexões se materializaram, principalmente, nas operações Carbono Oculto (Faria Lima), Banco Master e no esquema de desvio envolvendo aposentados do INSS.Ao presidente Lula coube não orientar a obstrução da votação da dosimetria — por sabê-la inevitável —, mas atribuir-lhe um preço: a governança até 2026.Em outras palavras, garantir a aprovação de medidas econômicas, entre elas a reoneração das folhas de pagamento de setores da economia que desfrutam de isenções há anos, ampliadas após a pandemia.Só nesse movimento o ministro Fernando Haddad obteve cerca de R$ 22 bilhões para sustentar o arcabouço fiscal.O pragmatismo do presidente tem cálculo e limites:– não incluiu orientação para que sua base votasse a favor do projeto (seria inútil e politicamente letal);– anunciou o veto antecipado, sabendo que o Senado o derrubará e ficará com a exclusividade do ônus;– sua base votou contra e já acionou o STF questionando a constitucionalidade da medida;– reduziu a temperatura política com discursos de agradecimento ao Congresso, resgatando Hugo Motta e Alcolumbre e declarando-os aliados nas matérias fundamentais ao governo.O STF, por sua vez, segundo informações não desmentidas, integrou o movimento nos bastidores, onde ocorreram conversas entre os condutores políticos do acordo e ministros como Gilmar Mendes e até Alexandre de Moraes.Registre-se, aqui, que Gilmar recuou da decisão de restringir ao procurador-geral da República a prerrogativa de impeachment contra ministros da Suprema Corte — gesto que ajuda a datar o início desse grande acordo.O cenário macro indica que todos — à exceção do extremismo bolsonarista — saem ganhando, sem prejuízo do essencial: a punição da cúpula do golpe, que cumprirá pena, ainda que por tempo reduzido, em regime fechado.Não se perdeu o principal: pela primeira vez na história, os mentores de um golpe de Estado, incluindo militares das mais altas patentes, foram condenados e já cumprem suas sentenças de prisão.Na sequência, Lula ajustou o tom com as Forças Armadas em um evento de confraternização de fim de ano, quando agradeceu a lealdade à democracia e sinalizou apoio à estruturação permanente das instituições militares.O presidente ganha oxigênio para o último ano de mandato, nos planos fiscal e financeiro, e preserva as condições para a continuidade de bons indicadores econômicos que ainda precisam ampliar seu reconhecimento junto a parcela significativa da população.Sem essa continuidade, tais números estariam ameaçados em 2026 e, certamente, desidratariam a expressiva vantagem eleitoral apontada por todas as pesquisas, frente a quaisquer adversários.O centro e a direita civilizada ganham musculatura para impor uma candidatura fora da família Bolsonaro, ainda que o candidato ungido por Jair, seu filho Flávio, defina o projeto do Senado como “um primeiro degrau” — uma entre muitas bravatas usadas para minimizar derrotas sucessivas no esforço de dar continuidade ao golpe.Configura-se, assim, um clima de distensionamento ditado pelas conveniências políticas e as eleitorais de 2026 e imprimem-se os primeiros sinais de isolamento da extrema-direita.Trocou-se a guerra por um acordo que privilegia interesses essenciais — e, com isso, reduzem-se as estatísticas de mortos e feridos.Alguns sinais desse acordo são veementes. A ele se seguiram as cassações de Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem pela Mesa da Câmara, rompendo com a resistência às decisões do STF.Do mesmo modo, a reação do presidente da Câmara, Hugo Motta, à recente operação de busca e apreensão contra os deputados Sóstenes Cavalcanti e Carlos Jordy revela mudança de postura.“O STF está cumprindo seu papel de investigar e eu não tenho compromisso com erros”, disse Motta sobre as operações — declaração que evoca a canção de Chico Buarque, “Quem te viu, quem te vê”.Ainda não é possível afirmar que entre os efeitos dessa negociação esteja a redução da resistência ao nome indicado por Lula para o STF, Jorge Messias. Mas não é improvável.Da mesma forma, não se deve descartar que a dosimetria ajude na estabilização das relações entre os governos Lula e Trump, o que pode ser inferido pelas declarações do Secretário de Estado dos EUA, Marco Rúbio, nessa sexta (19) que considera os dois países em “trajetória positiva”.É claro que há mais elementos nesse contexto — a Venezuela é um deles —, mas o fato é que Lula ampliou as conversas com Trump, cujo teor permanece desconhecido.Há quem prefira, no campo da oposição, classificar o acordo como um armistício, sob a ótica de um prazo de validade limitado pela campanha eleitoral de 2026. Parece apenas uma tentativa de minimizar seu impacto.Na prática, resta acompanhar para ver se o imponderável não desfaz a costura.Mas, por ora, ela está feita.