Alguns teólogos e padres têm por hábito, neste tempo de Natal, aludir ao subjetivismo simbólico do nascimento de Jesus. Referem-se à pobreza, sem outros adornos. E estou com eles. Não imagino um hebreu nascido na Judeia, o sul da Palestina, nas condições documentais que a Novo Testamento reporta (em nada diferentes das de outras crianças judias – incluindo o “nosso” Brian), a ter sinais exteriores de outra coisa. Outros exegetas, excessivos e dramáticos, preferem ir mais longe: falam no silêncio de um Deus hierático e grave – nem é bom pensar nisso. Daí até se recrearem nas subtilezas do despojamento, da liberdade do repouso cristãos vai um pequeno passo. Só que não é de sobriedade aquilo para que os evangelhos apontam: isso é sofisticado e habita apenas as mentes de alguns padres de homilia engraçadona. É de pobreza pura e dura. Jesus era um pobre. E como criança, como toda criança humana, só pode ter pecado, isto é, vivido em espontaneidade.A retórica do capitalismo moderno, perfeitamente integrada no Tempo Comum da Igreja Católica (Natal-Quaresma/Páscoa-Advento), não só é abjeta como perigosa. Pretende fazer-nos crer na humanidade do consumo (“humaniza-te”, aconselha mesmo uma grande empresa que nos esbulha diariamente) e no calendário da bondade, usando a pretensa inocência das crianças: este é um tempo de ser bom…Sabemos como à maioria das pessoas é necessária a ilusão das ilusões. Como a pobreza não é coisa boa de ver, esconde-se, engaveta-se. Fala-se de gente que dorme na rua como “pessoas em situação de sem abrigo”, enfatizando a efemeridade desse estado para consolo de consciências. A verdade é que os sem-abrigo são uma realidade endêmica, muitos deles residindo há anos nas arcadas dos prédios e sob viadutos de várias das nossas cidades. Uma situação lixada. Esta espécie de verdade custa. Mais fácil é aderir à ironia de Mario Benedetti: “Senhor, que não me vê, olhe um pouquinho: tenho um pouco de pobreza para lhe oferecer. Limpa, novinha em folha, bem desinfectada; vale quarenta, dou-lhe por dez. Serve como propaganda, como amostra, quem sabe até goste e me dê cem. Pobreza sem os pobres, é claro, já que os pobres nunca cheiram bem. Pobreza abstrata, sem trapos, pulcra, nobre do lado direito, nobre do lado do avesso. Uma bela de uma pobreza para ser contada, depois da sobremesa e antes do café.” No almoço de Natal.Mas ainda há tempo de nos reconciliarmos com os outros: antes, durante e muito depois do Natal. É uma luta de todos os dias. Tal como o amigo do Alexandre O´Neill: uma grande tarefa. Não pecamos se formos ricos. Pecamos se não reconhecermos a pobreza e não lutarmos contra os aparelhos ideológicos do Estado que a escondem e mascaram, e nos atiram para a miséria insensível da riqueza. Vivemos neste país do salário mínimo de 775 euros líquidos. E a taxa de pobreza nacional é, em 2025, de 18,6%, segundo o INE. Mantemos, contudo, a sanha profunda contra os sindicatos, contra os partidos políticos de esquerda e contra as ideologias que denunciam e recusam alimentar a perpétua tragédia social dos seres humanos.Todos nós reconhecemos o momento em que a nossa mente resvala para o pecado da conivência com um mundo classista, injusto e antidemocrático, sem, contudo, o admitirmos. Preparamo-nos para pecar, quando nos iludimos com esta grande beleza do mundo: Gaza, Sudão, Ucrânia, Síria, Somália, Etiópia, etc., etc., etc. Os pobres, os miseráveis, as vítimas não têm fim. Têm silêncio.Preparamo-nos para pecar, “enganando-nos a nós mesmos de que vamos fazer outra coisa e odiando-nos pelas intenções ocultas que não assumimos, nem perante nós mesmos”, elegendo um Natal de Centros Comerciais, de casacos e cachecóis elegantes, de luzinhas nas ruas, de mega-árvores de Natal – I would like a December with Christmas lights off and people’s lights on, desabafava Bukowski, agora estafado nas redes sociais. Queimamos o cabelo a outros homens, sem-abrigo e indefesos, na rua, e filmamos. Fazemos todos parte destas outras luzes, desta humanidade, destas novas fogueiras.Primo Levi lembrou que a sobrevivência, em Auschwitz, dependia de algo elementar como lavar a cara e o corpo. Ainda há tempo: antes, durante e depois do Natal. É mesmo possível lavar o nosso rosto mais íntimo, o rosto do perdão e da gratidão e da solidariedade e do combate. O rosto que se agiganta contra os canalhas (os bastardos do Ken Loach), os sacanas gabarolas que vamos sabendo quem são. O rosto que se apieda de quem sofre, seja rico, seja pobre. Lembra Santo Agostinho que “muitos pecados são cometidos por gente que chora e geme”. E tem razão. Estamos lá todos.Feliz Natal. (Transcrito do PÚBLICO)