Diz a Lei que ao juiz cabe o dever de decidir, e este não pode abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da Lei, ou com fundamento em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado. Perante tal, se de uma forma precipitada olharmos para a função de juiz, somos levados a pensar que a sua função primordial é decidir. Nada de mais errado. Tal seria muito simples e levar-nos-ia a cair em decisões afastadas da verdadeira finalidade da função jurisdicional – a de administrar a Justiça, tal como é contemplado pela nossa Constituição. E, pois, esta actividade dual de decidir, assegurando a Justiça, que move o juiz no exercício da sua função. A decisão não assenta em estados de alma, mas em elementos objectivos, temperados pelo conhecimento da natureza humana e da sociedade. Para isso a decisão judicial assenta num processo, onde se prevê uma forma ordenada de actos para que: primeiramente, se adquira o conhecimento das questões que cumpre efectivamente decidir (e que nem sempre são as que são percepcionadas por quem recorre aos tribunais); para que, seguidamente, se determine que factos ocorreram; e, só depois, se busque a solução que o Direito prevê como situação. Nas palavras de Von Jhering, «a forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gémea da liberdade», e é o respeito pela formalidade, ou seja, pelo método judiciário, que afasta a decisão da arbitrariedade e a traz para o campo da transparência e do rigor jurídico. O método judiciário tem como pano de fundo o que é levado ao processo pelas partes, não podendo o juiz por si, em regra, tomar em consideração factualidade que não seja levada por estas e, principalmente, basear-se em factualidade sobre a qual as partes não tenham tido oportunidade de se pronunciar. Assente o método seguido para a decisão, mesmo aplicando as normas jurídicas, o julgador pode, por vezes, ver-se confrontado com um resultado que geraria decisões injustas. Ora, ainda que as normas expressas não dêem resposta, o Direito não se basta com estas, e contém mais do que simples regras a que o julgador deve lançar mão para a resolução dos casos que lhe são colocados a resolver, contemplando um conjunto de princípios que enformam as regras e que têm um conteúdo tão vinculativo como aquelas, sendo o exercício interpretativo que lança a solução a dar para além do enunciado pela simples letra da Lei. Assim, através da análise das normas e da solução a que se chegou, em confronto com os princípios vigentes, ponderando-os numa lógica de máxima optimização, é possível chegar-se à decisão acertada. A decisão de um juiz Numa perspectiva subjectiva, a decisão de um juiz, apesar de muitas vezes ser apelidada de solitária, é na verdade tomada em conjunto com os diversos actores judiciários, que levam ao processo os elementos-chave para a tomada de decisão. Sendo limitado o poder do juiz para a composição do que lhe chega, aquele poder não é nulo, não se podendo colocar de fora do problema a que é chamado a resolver, de tal maneira que o respectivo desfecho lhe seja indiferente. É indiferente no sentido de que não tem interesse pessoal na causa, nem de forma directa nem indirecta, mas a finalidade de justiça deve sempre movê-lo, nomeadamente para indagar quanto ao que lhe falta para decidir, por perceber que dentro de uma lógica de normalidade a realidade que lhe é exposta se encontra incompleta. Numa dimensão temporal, observamos que a decisão do juiz se centra, na grande maioria das vezes, em factos ou ocorrências passadas e para casos concretos. Nesta dimensão, as decisões do juiz não se confundem com aqueles que decidem para o futuro e sem atender ao caso concreto, o que acontece por exemplo no campo do Direito, na função legislativa e, fora dele, comumente no mundo empresarial. Quererá isto dizer que a decisão judicial não tem efeitos para o futuro? Certamente que não, pois ser “a boca da Lei”, como foi definida a função jurisdicional por Montesquieu, tem também efeitos para além do caso concreto, podendo determinar uma alteração nos comportamentos das pessoas, empresas e administração pública e no próprio poder legislativo, que se adaptam às interpretações que os tribunais fazem do Direito aos casos concretos. Há um sistema de influência mútua, e a esta repercussão o juiz não pode estar alheio. Nesta perspectiva, não existe uma decisão certa que possa ser atentadora do bem comum, pois este é um factor de ponderação – com conteúdo vinculativo próprio. Deste modo uma optimização de uma solução em que prevaleça o bem individual, mas seja atentatória do bem comum (sendo este um valor que contém em si mesmo uma dimensão complexa de princípios) não permite a salvaguarda deste e, por isso, não pode ser acertada. A decisão do juiz, sendo livre, não é aleatória, ela é balizada por diversos elementos, e sendo seguido o método judiciário não pode resvalar para a arbitrariedade. A decisão não é tomada em absoluta solidão; a decisão é assente em factos, que resultem provados, assenta na aplicação de normas e princípios pré-existentes – sendo o desfecho de todo um processo, orientado (desejavelmente) por todos, para aquele fim – a tomada de uma decisão justa. Por: S. Monteiro Mesquita, Juiz de Direito Este artigo foi publicado na edição nº 31 da revista Líder, cujo tema é ‘Decidir’. Subscreva a Revista Líder aqui.O conteúdo Anatomia da decisão Judicial aparece primeiro em Revista Líder.