Se Garrett viajasse hoje pela sua terra não deixaria de ver Santarém, o Tejo aos pés da colina e a memória das pedras que guardam séculos, mas talvez os seus olhos se demorassem mais nas cidades que agora chamamos inteligentes, essas que se orgulham de sensores invisíveis e cabos que correm debaixo do chão como veias artificiais de um corpo que acredita estar vivo só porque a luz dos ecrãs não se apaga, encontraria o 5G em vez do fumo do carvão, os aplicativos em vez do rodar das rodas da carruagem, os algoritmos que dizem conhecer-nos melhor do que nós próprios e ainda assim descobriria que nada disso substitui a ternura de um gesto ou a clareza de uma palavra humana.Da janela já não de carruagem mas de telemóvel na mão veria os contrastes que teimam em atravessar os séculos, casas precárias ao lado de prédios reluzentes, bairros que esperam por médicos e professores enquanto outros se perdem em abundância e distração, jovens que partem porque não encontram lugar e velhos que ficam porque já não têm onde ir, e perceberia com a serenidade de quem viajou muito para chegar ao mesmo ponto que andamos mais depressa mas não mais longe, que corremos o risco de repetir a velha história de um país habituado a prometer futuro e a esquecer o presente.Carlos já não seria o liberal romântico mas o jovem precário a saltar de estágio em estágio sem salário, a contar moedas para pagar rendas impossíveis, e a comprar um bilhete só de ida porque às vezes a sobrevivência escreve-se com a geografia dos que partem, e Joaninha já não ouviria rouxinóis mas o som gasto das escolas onde as paredes se descolam e os professores rareiam, e mesmo assim sorriria porque a esperança quando nasce cedo não é escolha mas instinto, e Frei Dinis esse seria talvez o avô sentado à janela cansado de ver promessas repetidas como um refrão que já não engana mas ainda assim incapaz de abandonar a crença de que a política pode voltar a servir o futuro.E no entanto no meio de dashboards coloridos que não curam solidão, de sensores que não substituem cuidado, de algoritmos que não conhecem a alma, Garrett veria também que há uma beleza que não se deixa apagar, o mar que continua a abrir horizontes, os rios que apesar do lixo insistem em correr, as serras que ardem mas renascem, as crianças que sorriem mesmo quando falta tudo, como se Portugal tivesse sempre esta capacidade de resistir não por ingenuidade mas porque sabe que desistir seria uma forma de morte antecipada.É essa herança de esperança que se renova agora, no tempo em que nos aproximamos de mais uma escolha, no próximo dia 12 de outubro, quando cada um será chamado a decidir quem governa as autarquias que estão mais perto de nós, aquelas onde se joga a vida verdadeira, a rua onde caminhamos, a escola onde os filhos aprendem, o centro de saúde onde procuramos cuidado, o jardim onde respiramos, votar não é apenas um ato de rotina, é um gesto de pertença, é dizer que esta terra é nossa e não desistimos dela, é recusar a indiferença e assumir que o futuro começa no lugar onde habitamos.E talvez no fim desta nova viagem Garrett deixasse a mesma pergunta suspensa de há quase dois séculos mas com uma luz diferente, que terra é esta que chamamos nossa, talvez respondesse enfim que é a terra que escolhemos cuidar, a terra que ainda acreditamos poder reinventar, a terra que apesar de tudo continua a ser nossa porque não desistimos de a chamar pelo nome e porque só pertence verdadeiramente a quem não desiste de a amar.O conteúdo Viagens na minha terra 2.5 aparece primeiro em Revista Líder.