Há dias em que se sente o peso do mundo, não nos ombros, mas nos interstícios da vida quotidiana. Na fila de um balcão, no formulário que nunca termina, nas notícias que chegam fragmentadas e sempre urgentes. É nesse rumor que nos lembramos que nada do que é humano nos é alheio. Que a incerteza é a lei e que a liderança, essa bússola frágil e necessária, não se compra nem se encontra, constrói-se passo a passo, entre decisões e hesitações, entre riscos e oportunidades.Na 9ª edição da Leadership Summit Portugal, que tomou o palco do Salão Preto e Prata no Casino Estoril, discutiu-se o peso da burocracia que ainda paralisa o país, a fragilidade das democracias perante guerras e populismos, a resiliência que se aprende quando nada corre como planeado. Mas foi mais longe: abordou o risco que pode ser ameaça, mas também caminho de reinvenção, o espaço como última fronteira e a liderança como guia necessário num tempo de incerteza. Foi assim, de mesa em mesa, de voz em voz, que se cruzaram ministros e banqueiros, cientistas e filósofos, todos a lembrar que o futuro não se adivinha nem se adia, constrói-se, aqui e agora, no meio da turbulência. Com decisões e no meio da humanidade. «Eu era líder da oposição no governo de José Sócrates. Eu não gostava dele, ele não gostava de mim. Mas fizemos três acordos»Portugal esteve em foco com Luís Marques Mendes, que partilhou a sua visão sobre liderança num país em constante mudança, em conversa com o jornalista João Póvoa Marinheiro. Marques Mendes abordou tanto a política externa como os desafios internos, começando pelo Médio Oriente. Sobre o reconhecimento da Palestina por Portugal, sublinhou a complexidade da questão: «O Hamas é terrorista, mas reconhecer a Palestina é outra conversa. Não é uma posição calculista; é simbólica e humana.» Criticou a irrelevância atual das Nações Unidas e o declínio da influência dos Estados Unidos na cena internacional: «Vivemos numa tempestade perfeita», afirmou, referindo a pressão crescente da Rússia e da China e a necessidade de uma diplomacia estratégica e firme, mas prudente.No plano interno, Marques Mendes falou sobre a sua experiência política e sobre a importância da diplomacia mesmo entre adversários. «Eu era líder da oposição no governo de José Sócrates. Eu não gostava dele, ele não gostava de mim. Mas fizemos três acordos», recordou, destacando que a capacidade de negociação é crucial mesmo em contextos de atrito. Referiu ainda a necessidade de Portugal ter ambição social e de combater a corrupção de forma consistente: «Em Portugal fala-se muito de questões acessórias e pouco de coisas substanciais.»Sobre imigração e demografia, Mendes frisou que Portugal não pode abrir as portas indiscriminadamente, contudo, relembrou: «Um país que perde população é um país fraco. Os portugueses já não fazem alguns trabalhos. Temos de saber integrar culturalmente os imigrantes e valorizar especialmente os falantes de língua portuguesa, que são a imigração mais vantajosa para Portugal.» Liderar no país, concluiu, exige equilíbrio entre pragmatismo e visão estratégica, garantindo que Portugal mantém relevância global sem negligenciar os desafios internos.Repensar a burocracia, a cibersegurança e a inovação inclusivaO arranque foi através da Wake-up Talk by Magnesio Supremo® – Rethinking bureaucracy through digital efficiency, cybersecurity, and inclusive innovation. Durante quinze minutos, Nelson Pires, General Manager & Board Member da Jaba Recordati, e Simon Abikzer, Director of Governance, Risk and Compliance da CyVault, conduziram uma reflexão sobre como os governos podem transformar a burocracia em eficiência, apoiados na clareza, confiança e tecnologia.A conversa começou por sublinhar que a verdadeira reforma exige mais do que digitalização superficial: «implica repensar decisões, responsabilidades e estruturas, colocando a automatização, a rastreabilidade e a equidade no centro do processo», como referiu Simon Abikzer.Nelson Pires lançou uma questão em jeito de desafio: «e em Portugal, que 80% do tecido empresarial é composto por pme’s e pode não ter fundos?» Simon, nascido no Cazaquistão e a viver no Canadá, realçou a quantidade de programas existentes para apoiar estas empresas. «Desde o PRR – com iniciativas como o Coaching 4.0 ou os diagnósticos de maturidade digital – até ao Compete 2030 e ao programa Europa Digital da União Europeia, que reforçam a capacitação tecnológica das empresas.» Um futurista com horizontes bem definidos e uma análise geopoliticaO momento seguinte destacou-se pela política e pela geopolítica, com Sean Pillot de Chenecey a lançar o desafio de imaginar o futuro através da figura do Chief Political Officer. Para ele, a liderança exige rigor e adaptação, mas também novos navegadores capazes de redesenhar rotas num mar de riscos e incertezas. «Os políticos não entendem a realidade dos negócios. São necessárias novas regras. Novos navegadores, com novas cosméticas para ligarem novos portos. Não podemos funcionar sem confiança entre todas as áreas dos negócios. É vital termos noção da cascata de riscos e os vários níveis para conseguirmos desconfigurar as incertezas». No fundo, não basta adaptarmo-nos ao mundo digital, é preciso redesenhar decisões, clarificar responsabilidades, automatizar processos, tudo isto assente numa confiança fundamentada entre empresas, cidadãos e governos.Entre o ‘peso da história’ e a ‘pressão do presente’, Sean insistiu na urgência de puxar o futuro para o centro da equação. A sua visão articula-se com a noção de foresight: «pensar para lá do imediato, antecipar cenários e desenhar estratégias que não sejam apenas reativas». É um apelo direto às empresas e aos líderes para que cultivem confiança, autenticidade e visão de longo prazo num mundo onde as velhas certezas já não servem de bússola.Logo depois, Frank Tétart e Maria Castelo Branco mergulharam numa pergunta incontornável: How Can Democracies Win Wars? — uma conversa intensa e necessária, onde se cruzaram dúvidas sobre a resiliência das democracias em tempos de conflito. «As democracias estão em recessão», avisou Tétart, apontando para fenómenos como a desinformação, as fake news e o hybrid warfare. «Só se resolve isto através da verdade.» Maria recordou que, depois da Guerra Fria e da queda da União Soviética, a ilusão dominante era de que as guerras tinham terminado. Hoje, a pergunta é outra: como podem as democracias enfrentar quem rejeita os seus princípios liberais?Tétart sublinhou que as democracias trouxeram secularização, mas que os fluxos migratórios e a construção de novas narrativas abriram fissuras. «As democracias devem ser livres e aceitar as religiões, mas quando estas são instrumentalizadas, começam os problemas.» Trouxe à mesa o exemplo da Índia, onde a nacionalização hinduísta cria tensões e discrimina minorias. O mesmo sucede com o fundamentalismo islâmico, que, na sua visão, não é mais do que uma instrumentalização da fé.Maria lançou o dilema: como conciliar investimento em segurança social e em militarização? Para Tétart, esse é um dos grandes desafios da União Europeia: «Somos uma comunidade construída sobre a paz. A agressão à Ucrânia foi um choque. Pensávamos ter encontrado a paz. Mudámos muito desde 1995, mas hoje temos vários problemas à porta, nas nossas fronteiras.» A resposta, diz, passa por reforçar a defesa europeia e reduzir a dependência dos Estados Unidos.A conversa terminou no tema da polarização, com Maria a evocar nacionalismos, populismos e a Rússia a reescrever as pisadas do império — sem esquecer Israel. Tétart concluiu que o futuro depende da forma como a Europa souber repensar-se a si própria: «Será esse exercício que ditará a nossa capacidade de resistir.»Resiliência, uma espécie cósmica e o risco como uma possibilidadeO momento seguinte trouxe o tema da liderança e da resiliência, com Helene Westerlind, CEO da Zurich Portugal, a partilhar a sua visão em Meeting Tomorrow with Resilience. Para Helene, «resiliência é saber lidar com conflitos, novas lideranças, desilusões». A reflexão ganhou corpo num episódio da sua própria vida: foi a uma reunião com uma apresentação impecável, mas rapidamente percebeu que nada do que preparara servia para o caso. «Não podia ter só um plano A. Percebi que tinha de ter um plano B», contou.A sua mensagem final foi clara: a mudança é a única constante, e é dela que nasce a resiliência. «Quando uma porta fecha, outra abre. Ou, pelo menos, abre-se uma janela. O essencial é estarmos próximos de uma porta. É isso que importa.» A resiliência, concluiu, não é inata — constrói-se e desenvolve-se.Do espaço ao futuro, Ricardo Conde e Nini Andrade Silva abriram horizontes com New Rules for Space and Beyond, numa conversa moderada por Miguel Gonçalves, onde a imaginação encontrou a tecnologia. Ricardo Conde refletiu sobre a dimensão económica e humana do cosmos: «O espaço é um lugar económico, mas também exige atenção à segurança e à sustentabilidade. Queremos ser uma espécie cósmica, e Portugal tem de contribuir para esse futuro.» Nini Andrade Silva destacou a relação entre tecnologia, natureza e vida comunitária: «No espaço, poderemos replicar ambientes adaptados digital e naturalmente. As casas funcionarão em comunidade, com conforto, mas sem exageros.»A conversa explorou desafios concretos, desde o congestionamento orbital aos efeitos biológicos das viagens a Marte, projetando um futuro onde a exploração espacial e a inovação caminham lado a lado.O risco surgiu não como sombra, mas como horizonte de possibilidades, no debate que juntou Armindo Monteiro (CIP), Alberto Ramos (Bankinter), Sandra Silva (Veolia) e Alexandra Reis (Tabaqueira), moderado por Pedro Brito (Nova SBE). Armindo Monteiro abriu caminho lembrando que «o empresário não gosta de imprevisibilidade», mas que o risco sempre acompanhou a história do empreendedor. Para ele, falta matéria para dar corpo ao espírito criador dos portugueses: um verdadeiro ecossistema de conhecimento, equipa, financiamento e mercado, capaz de transformar ideias em valor. E, no futuro imediato, a inteligência artificial já não é promessa: é ferramenta para multiplicar produtividade.Sandra Silva respondeu com a urgência ambiental. «O conhecimento já não faz diferença por si, é o que fazemos com ele», frisou, defendendo que só com inovação e cooperação será possível «transformar risco em oportunidade». A escassez de água, lembrou, ameaça todas as atividades humanas. Alberto Ramos trouxe a voz da banca, que deve ser bússola em mares incertos: «O papel da banca é ajudar os clientes a tomar decisões duras, mas em favor da empresa. Temos de ser corajosos e próximos.» E Alexandra Reis, vinda de um setor fortemente regulado, fechou o círculo: «Decidimos reinventar-nos e transformar-nos, assumindo um risco muito grande», disse, defendendo a necessidade de modelos regulatórios claros para não travar a mudança. No fim, a mesa mostrou que o risco, em vez de travão, pode ser o motor da reinvenção.Um país em reforma para ultrapassar a burocraciaNo almoço no Hotel Palácio, o Ministro Adjunto e da Reforma do Estado, Gonçalo Saraiva Matias, trouxe na carta um dos pratos mais pesados da governação: a burocracia. Admitiu que «este é talvez o aspeto que mais nos atrasou nas últimas cinco décadas» e que os próprios funcionários públicos «são também vítimas do sistema, estando até na primeira linha da insatisfação». Anunciou a aprovação de uma estratégia de reforma transversal ao Estado, envolvendo todos os ministérios, para identificar — de forma detalhada — o que faz ou não sentido manter.Nesse caminho, a inteligência artificial terá um papel central, aplicada em três etapas: simplificação, digitalização e pessoas. Entre as novidades, destacou a criação da figura de um CTO do Estado, para garantir interoperabilidade e eficácia nos serviços públicos. E deixou claro o exemplo a seguir: «A Estónia já o faz. Se eles conseguem, também Portugal pode fazê-lo.»Por fim, abordou as alterações ao regime de licenciamento urbanístico, com a redução de prazos para a consolidação dos processos, a introdução de pareceres de entidades externas e a criação de uma plataforma eletrónica interoperável. Fez questão, contudo, de sublinhar que estas mudanças «não beliscam os poderes das câmaras municipais», preservando a sua autonomia, mas dotando o sistema de maior celeridade e transparência.O conteúdo «Apesar da oposição a Sócrates, fizemos três acordos», relembra Marques Mendes aparece primeiro em Revista Líder.