Ao vender ruas, SP está abrindo mão de sua identidade, diz arquiteto

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A possível venda de uma travessa nos Jardins, na zona oeste de São Paulo, para a iniciativa privada, levantou uma série de questões entre os moradores da capital paulista. Nas redes sociais, alguns perguntavam: “Uma rua pode ser vendida?”. Enquanto outros diziam que a comercialização de um lugar “sem uso” poderia beneficiar a cidade.Para o arquiteto e urbanista Valter Caldana, no entanto, um dos principais impactos dessa decisão não foi debatido profundamente: a ideia de que, ao vender suas ruas, a cidade de São Paulo está abrindo mão da própria identidade.“Em toda cidade do mundo os prédios vão mudando a cara, a cor, o uso, mas o arruamento é perene. Na medida em que uma cidade, uma sociedade, passa a entender que o seu espaço público é algo vendável, um produto mercantil, significa que ela está abrindo mão da sua própria identidade”, diz ele, em entrevista ao Metrópoles.Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do Laboratório de Projetos e Políticas Públicas da instituição, ele diz que o debate sobre a alienação de ruas para a iniciativa privada deve ser olhado para além da questão puramente comercial.“O problema não está no ato de vender a rua, mas em por que se está vendendo”, afirma. “Não está se vendendo a rua para se fazer uma cidade melhor, mas para fazer um lote maior. Essa é a questão estrutural.”No caso da Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, nos Jardins, que deu início a todo o debate, a venda do endereço foi solicitada à Prefeitura de São Paulo pela incorporadora Helbor, que comprou os lotes que cercavam a via.3 imagensFechar modal.1 de 3Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros JúniorJessica Bernardo/Metrópoles2 de 3Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, nos Jardins, em São PauloJessica Bernardo/Metrópoles3 de 3Travessa teve todos os imóveis demolidos por incorporadora que quer construir empreendimento no localJessica Bernardo/MetrópolesCom o objetivo de construir um empreendimento de luxo, utilizando o terreno por completo, a Helbor defendeu a aquisição da travessa com a ideia de que a via perderia o sentido, uma vez que não haveria mais casas ali.Diferentes áreas técnicas da prefeitura deram o aval para a venda, com argumentos de que a mudança não impactaria o trânsito, por exemplo. A gestão Ricardo Nunes (MDB), então, conseguiu autorização da Câmara Municipal para seguir adiante com o projeto de venda, e prevê receber R$ 16 milhões pelo espaço.Valter defende, no entanto, que as ruas devem ser entendidas não apenas sob o viés do trânsito e da organização viária, e sim como um espaço de convivência dentro da cidade. Para ele, abrir mão dessas áreas de convívio é retroceder para uma cidade do século passado.“A cidade do século XX é uma cidade ‘intra-lote’, que se preocupa com o que está dentro do lote, e onde a rua é o resto. Mas, na verdade, o mundo já percebeu, há muito tempo, que a cidade do século XXI é a cidade do lote para fora, da relação entre o edifício e a própria rua.”O arquiteto diz que é na rua onde as pessoas se encontram, buscam serviços e colocam em prática a cidadania. A lógica, difundida por diversos urbanistas ao redor do mundo, é a de que quanto mais espaços abertos ao convívio em sociedade, ou seja, de uso público, melhor a cidade se torna para as pessoas.Na contramão disso, segundo ele, está justamente a ideia de abrir mão de espaços públicos para atender a interesses privados que não dialogam com a população da cidade.“Se nós estivéssemos falando de projetos de uma cidade onde houvesse espaços de uso público, serviços, áreas de sombra, drenagem, banco para sentar, pequeno comércio de rua, etc., vender ou não vender 20 metros de rua talvez não fosse um problema, se viabilizasse isso”, afirma Caldana.O professor lembra, ainda, as emendas que o próprio projeto dos Jardins recebeu e diz que, ao entregar as ruas a quem deseja um lote maior, a cidade acaba abrindo um precedente que alimenta novos pedidos como esses.“A questão mais grave é a questão simbólica, da identidade mesmo. Porque, com isso, as ruas vão desaparecendo. Começou com uma vielinha, aí agora já são alguns segmentos de rua, daqui a pouco vão ser ruas inteiras. Na medida em que se abriu o precedente e um caminho normativo para fazer, vai ser uma prática comum”, diz.Relembre as emendas do PL 673/2025O projeto que previa a venda da Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, nos Jardins, à iniciativa privada recebeu 8 emendas de vereadores. Cinco delas também autorizavam a prefeitura a vender ruas e outros endereços públicos da cidade para empresas.Uma delas, da vereadora Zoe Martínez (PL), libera a venda de um terreno de 140m² na Avenida Brigadeiro Faria Lima. O lugar era onde antigamente passava o Córrego do Sapateiro, no Itaim Bibi, e foi alvo de uma disputa judicial de 25 anos entre a prefeitura e uma família de portugueses. Outro caso é da Rua Aurora Dias de Carvalho, na Vila Olímpia, zona sul. O lugar fica ao lado do antigo Eataly e foi inserido no projeto pelo vereador Sansão Pereira (Republicanos).Também na zona sul, uma emenda do vereador Isac Félix (PL) autoriza a venda da Rua Canoal, na Vila Andrade, que fica entre dois terrenos de uma igreja que o parlamentar frequenta.Há ainda uma emenda que libera a venda da Rua América Central, em Santo Amaro, onde moradores não foram consultados sobre o projeto. Considerada a mais polêmica da leva, e assinada pelo vereador Marcelo Messias (MDB), ela já foi descartada por Nunes publicamente.Por fim, há ainda uma emenda do vereador João Ananias (PT). O parlamentar autorizou a venda de um terreno na Rua Keia Nakamura, na região de Guaianases, na zona leste, para a criação de moradias populares.As outras três emendas, dos vereadores Fabio Riva (MDB), Silvinho Leite (União Brasil) e Silvão Leite (União Brasil), preveem a concessão de áreas públicas em diferentes bairros da cidade.Para além disso, diz Caldana, a medida vai contra a própria lógica do lucro capitalista ao fazer uma venda direcionada a um único comprador. “Se eu vendo a rua como se fosse um lote… Não existe um lote na cidade que interesse a uma só pessoa. É uma contradição.”O prefeito Ricardo Nunes defende a venda da travessa para a Helbor com o argumento de que ela é proprietária de todos os terrenos em volta da via, e é contrário a um leilão para o caso.O projeto dos Jardins e as emendas que ele recebeu são alvo de uma ação do Ministério Público de São Paulo (MPSP), que tenta suspender a medida de forma cautelar. A Justiça ainda não decidiu sobre o pedido.