Dias antes de morrer, soldado disse à tia que deixava arma sem munição

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Uma semana antes de ser encontrado morto na guarita em que trabalhava como sentinela, com um tiro de fuzil na cabeça, o soldado Christian Paiva Korosi, de 19 anos, havia conversado com uma tia sobre manter a arma que usava desmuniciada. A tragédia aconteceu em um quartel do Exército, na zona oeste paulistana, em 27 de julho do ano passado.Como revelado pelo Metrópoles, a morte do jovem foi oficialmente registrada como suicídio pelo Exército, após uma investigação permeada por falhas e inconsistências, apontadas em um laudo particular solicitado pela família.Diante das falhas e da certeza de que o filho não cometeria suicídio, a mãe de Christian, Juliana Korosi, trava uma batalha pessoal para que o caso seja reaberto e novamente investigado. “Meu filho não se matou”, diz. Para ela, ele pode ter sido vítima de acidente ou homicídio.10 imagensFechar modal.1 de 10Arquivo Pessoal2 de 10Arquivo Pessoal3 de 10Arquivo Pessoal4 de 10Arquivo Pessoal5 de 10Arquivo Pessoal6 de 10Arquivo Pessoal7 de 10Arquivo Pessoal8 de 10Arquivo Pessoal9 de 10Arquivo Pessoal10 de 10Arquivo PessoalA tia de Christian, Camilly Korosi, somente um ano mais velha que a vítima, relatou ao Metrópoles que, uma semana antes da morte, perguntou ao sobrinho se ele tinha medo da arma que usava no trabalho. Ela perguntou isso porque, no passado, ambos gostavam de jogos de videogame nos quais usavam armas contra zumbis, ou inimigos virtuais.“Ele, com paciência, me explicou como funcionava: que a arma precisava estar destravada e municiada para disparar, e que mesmo carregada, se estivesse travada, não aconteceria nada. Também contou que, por segurança, nunca deixava munição nela. Foi uma troca [de ideia] simples, mas que mostrou como a nossa amizade tinha intimidade e confiança”, relembrou.Por causa da pouca diferença de idade, tia e sobrinho foram criados como irmãos, crescendo juntos e compartilhando momentos de alegria e de dor, como quando o namorado de Camilly se acidentou com uma moto e morreu, em março de 2023. Ela viveu uma fase difícil, segundo ela, mergulhando em uma profunda depressão.“Nesse período, o Cristian foi essencial para mim. Ele me ajudou de formas simples, mas muito significativas: pedia comida mesmo quando eu não queria comer, fazia brincadeiras para me animar, me chamava para sair de casa, e me acompanhava em todos os lugares. Graças a ele, consegui retomar um pouco da vida social que tinha perdido”, contou.Aventureiro e arteiroChristian nasceu de cesariana, por volta das 14h de 26 de dezembro de 2004, e morou a vida toda na casa que o pai construiu juntamente com o avô, Pedro Korosi, por quem o jovem nutria um amor profundo.Na infância, o garoto gostava de escalar móveis. Segundo a mãe, ele aprendeu a andar com 10 meses e a falar muito rápido. Ele foi criado até os 8 anos pelos avós e familiares, que deram apoio para cuidar do menino enquanto a mãe trabalhava.Nesse meio-tempo, nasceu a irmã dele, Izadora Paiva Korosi, em maio de 2009. Algumas das brincadeiras em comum dos irmãos foram registradas em vídeo e compartilhadas no YouTube.Antes de decidir pela carreira militar, Christian chegou a manifestar o desejo de ser jogador de futebol e, depois disso, gamer, chegando a ganhar dinheiro com isso.Ele também adorava animais. “Ele ia no final da rua e lá tinha uma chácara. Ele ia junto com minha irmã caçula (Camilly), que tem diferença [de idade] de um ano. Ele voltava da chácara com tartaruga, patinho, galinha, pintinho, coelho, ele amava os animais”, relembrou Juliana, às gargalhadas.Parceiro da tiaA tia, Camilly Korosi Paiva, com quem Christian foi criado junto, fala dele com emoção. “Para mim, lembrar do Cristian é lembrar de carinho, cuidado e parceria. Ele foi alguém que me ajudou a atravessar um dos períodos mais difíceis da minha vida, sempre com leveza e generosidade”.Em encontros familiares aos fins de semana, Christian em algumas ocasiões vestia a farda do Exército e posava para fotos junto com os parentes. “Ele tinha orgulho de servir”, destacou a mãe.Segundo a família, o soldado pretendia sair do Exército e ingressar na Polícia Militar. Ele chegou a manifestar esse desejo aos superiores, mas foi avisado que só poderia fazer isso em setembro deste ano.Inconsistências oficiaisO soldado Christian de Paiva Korosi foi encontrado morto dentro de uma guarita do 2º Batalhão de Suprimento, na zona oeste paulistana. O laudo oficial do Exército sobre a morte do militar é marcado por divergências: descreveu sinais de tiro encostado e, ao mesmo tempo, indícios de disparo à curta distância; registrou a altura de 1,74 metro para o jovem, quando ele media 1,62m, e não documentou vestígios obrigatórios, como o impacto do projétil na guarita.As falhas, identificadas em uma perícia particular contratada pela família do soldado, se somam a atrasos inexplicáveis. O celular do militar foi devolvido à mãe somente sete meses após a morte, sem perícia, e o fuzil que teria sido usado no suposto suicídio demorou 58 dias para ser enviado aos peritos, inviabilizando a coleta de vestígios.Vídeo:“Muita coisa acobertada”A advogada Marinalva de Aguiar, que representa a família, afirma que a apuração militar foi conduzida sem o devido rigor técnico. “Muita coisa foi acobertada. Hoje não conseguimos mais coletar DNA. Por que o Exército faria isso? É óbvio: jamais a União vai falar: ‘Cometemos um erro’.”As contradições também aparecem no prontuário médico incompleto, na demora para a análise do fuzil e no reaparecimento tardio do celular, elementos que, segundo a defesa, inviabilizaram uma investigação imparcial.Discreto, Christian guardou para si as punições que sofreu, descobertas pela mãe somente após ela ter acesso ao celular do filho.“Achei estranho que há uma conversa, dias antes de ele ser encontrado morto, com um superior. Ele manda um bom dia para o major e não há mais nada depois disso”, afirmou Juliana, destacando que a mensagem foi enviada 14 dias antes de Christian morrer.Ela desconfia que a troca de mensagens foi apagada, porque o filho, como todo jovem, era ativo nas redes e não ficaria dias sem usar o WhatsApp.Ministério Público Militar pediu diligênciasDiante desse quadro, o Ministério Público Militar requisitou novas diligências. O promotor Adilson José Gutierrez pediu à Polícia Científica de São Paulo esclarecimentos sobre os laudos oficiais e solicitou documentos ao Exército.Ele requisitou que peritos oficiais esclareçam os pontos técnicos controversos — como a diferença na estatura da vítima entre laudos e a suposta sobreposição de sinais de tiro encostado e de curta distância.Além disso, pediu ao Exército documentos formais sobre a escala de serviço e a cautela do armamento. Para o promotor, apenas uma análise aprofundada das provas poderá afastar as contradições que cercam a morte do soldado. Ele ainda não informou se pedirá a reabertura do caso.O que diz o ExércitoO Comando Militar do Sudeste (CMSE) afirmou ao Metrópoles, em nota, que realizou novas diligências sobre o caso, nessa quinta-feira (25/9), atendendo a pedido do Ministério Público Militar.Disse, ainda, que a conclusão do laudo oficial que indica o suposto suicídio de Christian foi fundamentado em análises periciais e “demais provas produzidas”. O arquivamento do caso foi feito por determinação da Justiça Militar da União e da Promotoria Militar.“Cabe esclarecer que o local onde o fato ocorreu foi devidamente preservado, conforme as normas vigentes, cabendo ao órgão pericial do Exército a realização da perícia, em razão de o fato ter ocorrido em área sob jurisdição militar”, informou o Exército.O Comando do Sudeste afirmou, ainda, que o Instituto Médico Legal removeu o corpo do soldado “diretamente do cenário do ocorrido” com a conclusão “dos trabalhos periciais” .O Exército disse, por fim, que se solidariza com a família e afirmou que pauta suas ações “pelo respeito irrestrito à legalidade”.Nenhum posicionamento foi feito sobre as contradições apontadas no laudo particular. O caso seguia engavetado até a conclusão desta reportagem.