A “grande fratura”: o colapso matemático da China

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A China enfrenta hoje quatro impossibilidades matemáticas interconectadas: uma crise demográfica em que a força de trabalho encolhe enquanto o número de aposentados explode; uma dinâmica de dívida em que cada vez mais empréstimos produzem retornos decrescentes; restrições de inovação apesar de gastos massivos em pesquisa e desenvolvimento; e uma dependência crítica de recursos em meio a uma moeda enfraquecida.A dependência externa agrava o dilema: a China importa cerca de 75% do petróleo que consome, 70% da soja, 80% do cobre e 95% do lítio. São insumos estratégicos para energia, alimentação, infraestrutura e tecnologia verde. Cada fração de crescimento exige mais recursos, mas, para comprá-los, a China precisa de dólares, e para obter dólares precisa exportar — exatamente o modelo que se deteriora com menos mão de obra barata e falta de inovação.Leia mais: Trump tem estratégia. E quem não entender isso, vai ficar para trásEstes não são desafios políticos que uma nova liderança poderia resolver. São realidades aritméticas que se reforçam mutuamente e que o regime de Xi Jinping não tem como enfrentar de forma ordenada.Crescimento populacional em quedaAs projeções da ONU (World Population Prospects 2024) são implacáveis: a taxa de fertilidade chinesa está ao redor de 1,0 – 1,1, aproximadamente metade da necessária para manter a população estável. O total de aposentados cresce 20 milhões por ano, enquanto a força de trabalho encolhe 10 milhões. Nesse compasso, até 2050 haverá aproximadamente 450 milhões de pessoas acima de 65 anos para uma população ocupada no mercado de trabalho drasticamente reduzida, em torno de 700 milhões – criando uma relação de dependência que nenhum sistema previdenciário foi projetado para sustentar. A China não será o primeiro a conseguir.Alguns analistas argumentam que o país poderia compensar isso com uma transição para o consumo interno, aproveitando seus 1,4 bilhão de consumidores e a ascensão da classe média. Mas essa é uma esperança aritmeticamente impossível. Populações envelhecidas tendem a poupar, não gastar. Jovens sem emprego não consomem.O desemprego juvenil está acima de 20% segundo dados oficiais, e estimativas independentes sugerem mais de 30%. E não se trata de uma geração “preguiçosa”: a causa é estrutural – desaceleração econômica, colapso do setor imobiliário, falta de empregos qualificados.O fenômeno “tang ping” (ou “deitar-se”) que viralizou entre os jovens chineses, simboliza o desânimo de uma geração que cresceu com prosperidade e não aceita sacrificar-se sem perspectiva de futuro. Significa literalmente recusar-se a competir na corrida social. Jovens desiludidos com a falta de perspectivas, optam por viver com o mínimo, rejeitando as pressões de carreira e consumo. Mais que preguiça, é um retrato de desalento geracional diante de uma equação sem futuro.O dilema da economia chinesaA matemática da dívida reforça o impasse. Segundo o BIS, a dívida do setor não-financeiro já chega a 295% do PIB (dados de 2023). Quando se incluem as operações do chamado shadow banking e os veículos extra balanço – empresas criadas por governos locais (os Local Government Financing Vehicles, ou LGFVs) para captar recursos fora do orçamento oficial -, a alavancagem estimada se aproxima de 350% do PIB.O crescimento nominal da economia tem ficado na faixa de 4-5% nos últimos anos, enquanto o custo médio da dívida gira em torno de 4% ao ano. O resultado é que cada vez mais dívida é necessária para gerar o mesmo crescimento: hoje, US$ 3 trilhões em nova dívida para produzir apenas US$ 1 trilhão em PIB. Essa dinâmica de retornos decrescentes expõe o país a um círculo vicioso: quanto mais se endivida, menos eficiente esse endividamento se torna.Inovação: investimento sem retornoNo campo da inovação, a realidade não é diferente. Apesar de gastar mais de US$ 500 bilhões anuais em P&D, a China não consegue produzir semicondutores de ponta, motores a jato comerciais competitivos, vacinas mRNA equivalentes às ocidentais ou softwares empresariais globais. Mesmo os chips de 7 nanômetros produzidos pela SMIC (Semiconductor Manufacturing International Corporation, a principal fabricante de semicondutores da China) estão duas gerações atrás dos líderes globais.“7 nanômetros” é a medida de miniaturização dos transistores: quanto menor a escala, maior a capacidade computacional e menor o consumo de energia. Na prática, porém, essa produção chinesa depende de equipamentos ocidentais, ocorre em baixa escala e a custos elevados.A inovação verdadeira requer informação aberta, tolerância ao fracasso, proteção da propriedade intelectual e liberdade para desafiar autoridades. É justamente o que o sistema autoritário chinês não permite. O resultado é que a defasagem criativa aumenta a cada ano, não diminui.O método chinês para contenção de criseZero-COVID foi o raio-X definitivo do sistema. Confrontado com a impossibilidade de conter a variante Ômicron, Xi Jinping dobrou a aposta em vez de adaptar a estratégia.Cidades com mais de 25 milhões de habitantes foram trancadas por causa de casos isolados. A economia foi paralisada por um vírus já domesticado por vacinas no resto do mundo. Então, em dezembro de 2022, veio a reversão total, da noite para o dia, sem preparação nem transição. Hospitais colapsaram, milhões foram infectados ao mesmo tempo, e incontáveis mortes ficaram sem registro. O padrão é claro: negação, repetição do erro, pânico e reversão caótica. Se não conseguiu adaptar-se a um vírus, como se adaptará a uma crise demográfica e de dívida?Há quem diga que regimes autoritários têm a vantagem da ação decisiva: reestruturar dívidas de forma imediata, realocar milhões de pessoas, suprimir dissidências. Mas cada solução desse tipo cria novos problemas. Forçar deslocamentos em massa gera ressentimentos que duram gerações. Fechar setores inteiros destrói a confiança dos empresários. Reestruturar dívidas sem estado de direito implode o mercado de capitais. O autoritarismo não resolve crises: amplifica erros.Defensores do modelo chinês também recorrem ao exemplo do Japão, que conseguiu atravessar três décadas de declínio demográfico sem colapso, sustentado por democracia, aliança com os Estados Unidos, tecnologia de ponta e instituições sólidas. Mas a comparação não se sustenta. O Japão tinha válvulas de escape: cidadãos podiam votar, protestar, emigrar. A democracia amorteceu a estagnação. A China não tem essas válvulas. Quando o crescimento estagnar, o Partido Comunista perderá sua única fonte de legitimidade: o pacto tácito “nós entregamos crescimento, vocês ficam quietos”. Sistemas autoritários não conseguem administrar declínio pacificamente porque não podem admitir fracasso. Como ocorreu com Gorbachev, qualquer tentativa de Xi de corrigir o rumo arriscaria abrir a rachadura que implode o regime. Mesmo que a aritmética interna já seja insustentável, fatores externos podem acelerar o desfecho. Entre eles, a pressão americana, com sanções, alianças e restrições financeiras cada vez mais duras. Não é coincidência que esse cerco tenha se intensificado justamente quando as fragilidades estruturais da China ficaram mais evidentes. Trump, com seu estilo errático, inaugurou tarifas e sanções que embaralharam os planos de Pequim. O establishment americano – inteligência, diplomacia e defesa – parece consciente de que este é o momento ideal para acelerar a pressão e testar os limites do modelo chinês. E Taiwan pode ser, para a China, o que o Afeganistão foi para a União Soviética: um atalho para o desgaste definitivo, acelerando o colapso em vez de preveni-lo.Na minha avaliação, o cenário mais provável é o de uma crise sistêmica entre 2027 e 2035, com 60% de chance. Essa não é uma probabilidade estatística exata, mas uma estimativa baseada no encadeamento das tendências. Atribuo ainda 25% a uma estagnação japonesa com características chinesas, sustentada por repressão total, mas improvável politicamente e 15% a um conflito externo como distração (Taiwan ou o Mar do Sul), expediente historicamente associado a colapsos acelerados.Nenhuma análise séria estaria completa sem reconhecer as incertezas. As dinâmicas podem levar 20 anos em vez de 5 ou 10. Avanços tecnológicos disruptivos, como inteligência artificial ou fusão nuclear, poderiam alterar completamente a equação.A resiliência cultural chinesa, subestimada no Ocidente, pode prolongar a trajetória. E não se pode descartar a possibilidade de a China encontrar um modelo alternativo e imprevisível que escape às nossas categorias. Mas, apesar das incertezas, a conclusão é clara. A China enfrenta impossibilidades matemáticas que se reforçam mutuamente.Zero-COVID já mostrou a sequência típica: negação, repetição do erro, pânico e reversão caótica. Quando a crise demográfica e da dívida se tornar inegável, veremos o mesmo ciclo, mas em escala maior.Para o Brasil, isso representa tanto risco quanto oportunidade. Em commodities, a China continuará comprando, mas com menos poder de barganha. Na indústria, parte da manufatura que sai da China pode vir para cá. No tabuleiro geopolítico, será necessário escolher o lado vencedor.Para investidores, a recomendação é reduzir exposição à China e ampliar posições em países como Estados Unidos, Índia e Vietnã.A aritmética não tem ideologia. Não se curva à autoridade. E, no fim, sempre vence.The post A “grande fratura”: o colapso matemático da China appeared first on InfoMoney.