Miguel, Rafael e Gabriel, os anjos que são reverenciados em três diferentes religiões

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Afresco atribuído a Giotto mostra São Francisco tendo a visão de um anjoDomínio PúblicoNa Bíblia, os anjos aparecem sempre que há a necessidade de narrar alguma comunicação divina ao ser humano. Na tradição popular, cada um tem o seu, como um protetor, um segurança pessoal. Nas artes, pintores e escritores muitas vezes os retrataram e os incluíram em suas obras.Literalmente, a palavra "anjo" significa "mensageiro". "Vem do latim 'angelus' que, por usa vez, deriva do grego 'ángelos', e esta é a forma helênica usada para traduzir [do Antigo Testamento] o termo hebraico 'malakh', que significa mensageiro", explica à BBC News Brasil o teólogo Kenner Terra, pastor da Igreja Batista de Água Branca, doutor em ciências da religião e autor do livro Coragem para Ser.Terra completa que a figura se refere à "alguém que transmite algum comunicado". "Nas tradições judaica e cristã antigas, anjos são mensageiros e agentes celestial a serviço de Deus", afirma.Nos textos que compõem a Bíblia, esses seres aparecem cumprindo diversas funções: participam de guerras, integram exércitos celestiais, protegem pessoas e povos, levam mensagens divinas, cumprem os desígnios de Deus, organizam o cosmos e articulam as estações do ano."Os anjos são criaturas puramente espirituais, criadas por Deus, dotadas de inteligência e vontade livre, cuja finalidade é servir ao Senhor", define à BBC News Brasil o teólogo, escritor e padre católico Alex Nogueira, autor do livro Bom Dia, Meu Deus, e reitor do Seminário de Teologia Divino Mestre."Algumas classes de anjos também possuem a especialíssima missão de auxiliar os homens no caminho da salvação. Eles são mensageiros de Deus e, embora invisíveis, estão constantemente presentes na história da salvação, desde o Antigo Testamento até a missão de Cristo e da Igreja.""A figura de alguém que é anunciador e que muitas vezes aparece como provedor está presente em várias outras culturas religiosas", contextualiza à BBC News Brasil o pesquisador de textos sagrados Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.CristianismoGravura do século 19 traz Dante e Beatriz, em referência à Divina Comédia, com anjos no Paraíso, em ilustração de Gustave DoréDomínio PúblicoNa tradição cristã, diversos pensadores buscaram teorizar a respeito dos anjos — existe até um ramo da teologia denominado angeologia. No final do século 5 ao início do século 6, um filósofo que se identificava pelo pseudônimo de Dionísio, o Areopagita — em referência a um convertido de Atenas mencionado em texto bíblico do apóstolo Paulo — escreveu obras que se tornaram pilares para o entendimento acerca dessas criaturas."Ele foi um dos pioneiros a propor um sistema, uma hierarquia específica para os anjos", diz Maerki. "Sua classificação acabou se tornando a mais conhecida."Dionísio buscou organizar a crença e estabeleceu uma hierarquia divina para os anjos. Segundo seu pensamento, seriam nove as ordens angélicas. No topo, estariam os serafins, seguidos pelos querubins e pelos tronos. Então viriam as dominações, as virtudes e as potestades. Por fim, os principados, os arcanjos e os anjos. Ele explicava que essa organização não se referia a uma pretensa superioridade — todos gozariam de igual importância. Essa hierarquia explicava quais estariam mais próximos de Deus.Oficialmente, a Igreja Católica determina que o dia 29 de setembro é o dia dos arcanjos. Que seriam três: Gabriel, Miguel e Rafael. No dia 2 de outubro, por sua vez, é a festa dos Santos Anjos da Guarda."A terminologia arcanjo vem do grego e significa 'anjo principal' ou 'chefe dos anjos'", conta à BBC News Brasil o escritor e pesquisador J. Alves, autor do livro Os Santos de Cada Dia. De acordo com ele, os arcanjos seriam os "enviados por Deus para cumprir uma missão na história da salvação".Segundo o Evangelho, é Gabriel, por exemplo, que aparece para Maria anunciando a ela sua gravidez de Jesus.Alves ensina que ao longo do séculos de cristianismo, teólogos se dedicaram a explicar quais seriam as funções de alguns anjos. Assim, ficou consolidado que Miguel seria o "guardião do povo de Deus e guerreiro contra o mal". Gabriel, o "mensageiro da força de Deus, aquele que anuncia os mistérios da encarnação". E Rafael, o "médico e consolador, expressão da misericórdia divina".Outras crençasApesar de ser uma crença muito forte no meio cristão, sobretudo no católico, os anjos não são figuras que nasceram nessa religião — e não são exclusividade da fé de seus praticantes."A crença na existência dos anjos é comum, mas a dimensão litúrgica e devocional, como festas próprias, orações específicas e invocação dos arcanjos é muito mais característica do catolicismo", situa Nogueira.Mas começou muito antes. "A crença em anjos é anterior ao cristianismo. No judaísmo antigo, eles aparecem em visões proféticas e foram influenciados pela angeologia persa após o exílio babilônico", comenta Alves. "Culturas mesopotâmicas e egípcias também falavam em seres mensageiros e guardiões.""A crença em seres celestiais a serviço dos deuses ou de uma estrutura hierárquica no ambiente divino tem paralelos em outras culturas para além do mundo bíblico", complementa Terra. "Na cultura persa, especialmente no zoroastrismo, por exemplo, não se fala exatamente em anjos como no judaísmo e no cristianismo, mas encontramos seres espirituais intermediários entre Ahura Mazda, o Deus supremo, e os seres humanos, os quais são classificados também em hierarquias."Essa tradição influenciou profundamente a tradição bíblica e as crenças do judaísmo do segundo templo", diz ele.É uma visão comum aos outros especialistas. "A crença em seres espirituais mensageiros já existe em culturas antigas", confirma o padre Nogueira. "Povos mesopotâmicos, egípcios e persas falavam de espíritos intermediários entre o divino e os homens." Ele pondera, contudo, que "a fé católica" não seria derivada "dessas tradições, mas da revelação de Deus ao povo de Israel, registrada nas Escrituras"."A fé cristã bebe sobretudo do judaísmo, do qual herda elementos da vasta tradição rabínica sobre anjos e arcanjos", salienta Alves."Os anjos são anteriores à Bíblia e aparecem, por exemplo, na Mesopotâmia e no Egito. Eles não tinham os nomes de anjos, mas, tinham as mesmas funções dos anjos", conta à BBC News Brasil o hagiólogo José Luís Lira, professor na Universidade Estadual do Vale do Acaraú e fundador da Academia Brasileira de Hagiologia.Nas chamadas tradições abraâmicas, ou seja, o conjunto de crenças abarcado pelo judaísmo, pelo cristianismo e pelo islamismo, há mais semelhanças que diferenças entre o significado desses seres místicos."No islamismo, inclusive, o arcanjo Gabriel teria aparecido ao profeta Maomé [o fundador do islã]", ressalta Lira.Padre Nogueira contextualiza que, no judaísmo, eles costumam ser considerados "servos e mensageiros de Deus". No cristianismo, "além disso participam do mistério da salvação em Cristo". E no islamismo, "desempenham funções semelhantes, como Gabriel que transmite a revelação a Maomé"."Os anjos desempenham um papel importante em outras religiões não-cristãs, tais como judaísmo e islamismo", confirma à BBC News Brasil o teólogo Jônatas de Mattos Leal, doutor pela Andrews University, em Michigan, nos Estados Unidos, e reitor no Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia.Leal conta, por exemplo, que o islã menciona quatro arcanjos: Izrail, Mikail, Israfil e Jibrail — este último é o equivalente a Gabriel. E lembra que "a ideia de seres celestiais que atuam como intermediários" aparece, além do zoroatrismo, também em mitologias ancestrais babilônicas, romanas e gregas.'O Anjo da guarda', pintura do alemão Bernhard Plockhorst, feita no século 19Domínio PúblicoTradição popularSe as teologias e as diversas religiosidades institucionais trataram de sistematizar e normatizar as funções e os papéis dos anjos, as tradições populares trataram de transformar a figura em um simpático faz-tudo: de guarda-costas particular a auxiliador para tudo."A religiosidade popular costuma traduzir ideias a partir de necessidades e práticas cotidianas", comenta Terra. "A crença em anjo da guarda, por exemplo, tem suas raízes no evangelho de Mateus, no qual Jesus diz que os pequeninos têm anjos que contemplam a face do Pai. Este é o principal texto para defender a ideia de anjo da guarda."Ele lembra que pensadores cristãos antigos, como Gregório de Nissa (330-394), Basilio de Cesareia (330-379) e Tomás de Aquino (1225-1274), "também defenderam a existência de anjos que cuidam de maneira particular de cada pessoa".Nogueira afirma que a "devoção ao anjo da guarda" é o melhor exemplo da presença da figura no meio popular. "A Igreja ensina que cada pessoa possui um anjo designado por Deus para proteger e guiar. Isso deu origem a orações simples, difundidas entre crianças, mas também a uma confiança cotidiana dos fiéis em sua proteção", contextualiza ele."Na cultura popular, surgiram expressões e analogias para se chegar ao sagrado. A célebre discussão medieval sobre 'quantos anjos cabem na ponta de uma agulha' não era, de fato, uma questão literal, mas um modo filosófico de refletir sobre a natureza incorpórea dos anjos", reflete o padre. "Outras tradições, como representá-los com asas ou em formas infantis, os 'anjinhos', refletem tanto influências artísticas quanto a imaginação popular que buscava tornar visível o invisível."O teólogo Leal ressalta que "a Bíblia não menciona explicitamente a ideia de que cada pessoa tem um anjo guardião". "Contudo, há diversas ocasiões em que pessoas são livradas pessoalmente através da operação de anjos protetores", pondera. "O envolvimento pessoal de anjos, no Novo Testamento, está implícito [em diversas passagens].""Biblicamente falando, a possibilidade de cada pessoa ter um anjo guardião está aberta, embora não seja afirmada", conclui ele."Os anjinhos estão nas imagens de Nossa Senhora e até aos recém-nascidos falecidos ou àqueles que morrem no ventre da mãe, se costuma de dizer que é um anjo, que foi direto ao céu", comenta o hagiólogo Lira.Alves acrescenta que o acolhimento aos anjos na religiosidade popular foi um fenômeno que ocorreu "com grande afeto". "A devoção ao anjo da guarda remonta à Idade Média", diz o pesquisador, frisando que foi oficializada uma festa litúrgica dedicada à figura em 1608.'A Assunção da Virgem', de Francesco Botticini, obra do século 15, mostra três hierarquias e nove ordens de anjos, cada uma com características diferentesDomínio PúblicoArte e culturaA figura passou a ser uma constante em produções artísticas, compondo telas e afrescos e integrando narrativas literárias. "Há uma tradição muito grande na iconografia, na pintura, de retratar o anjo sempre envolto por luminosidade e com asas", nota Maerki."A figura do anjo da guarda está presente. A arte cristã difundiu amplamente sua imagem, moldando o imaginário popular", ilustra Alves. "Os anjos entraram também na linguagem comum, em expressões como 'foi salvo por um anjo' e 'parece um anjo' e em anedotas, como a expressão 'sexo dos anjos', que ironiza as discussões bizantinas sobre sua natureza espiritual."No mundo contemporâneo, ganhou também a cultura pop. Não há brasileiro das últimas décadas, por exemplo, que não conheça o personagem Anjinho, conhecido por tentar defender sobretudo o Cebolinha em suas aventuras atrapalhadas no universo da Turma da Mônica, criado pelo quadrinista Mauricio de Sousa.Conheça a origem do presépio, que completa 800 anos em 2023