Todas as sextas-feiras, ao vivo, a partir das 21h (pelo horário de Brasília), vai ao ar o Programa Olhar Espacial, no canal do Olhar Digital no YouTube. O episódio da última sexta-feira (23) (que você confere aqui) repercutiu um estudo publicado na revista cientifica Icarus, segundo o qual fragmentos de Mercúrio podem ter sido encontrados na Terra.Em entrevista, o doutor em química Gabriel Gonçalves explicou quais características indicam a origem mercuriana desses objetos espaciais e quais as alternativas para essa proposta. Caso a hipótese dos pesquisadores seja confirmada, esse seria o primeiro registro de rochas de Mercúrio em solo terrestre, sendo uma oportunidade rara de estudo.Gonçalves tem doutorado em química fundamental com ênfase em astrobiologia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Rede Brasileira de Observação de Meteoros (Bramon), onde atua com pesquisa de meteoros e fenômenos atmosféricos, ele também se dedica à divulgação científica, especialmente em astrobiologia, astronomia e meteorítica.O Programa Olhar Espacial da última sexta-feira (1) recebeu Gabriel Gonçalves, doutor em química fundamental com ênfase em astrobiologia, para falar sobre os possíveis meteoritos de Mercúrio descobertos na Terra. (Imagem: Arquivo pessoal)Luz emitida por Mercúrio nos conta sobre sua composiçãoA recente hipótese de pesquisadores britânicos agitou o mundo ao propor que os meteoritos Ksar Ghilane 022 (KG 022) e Northwest Africa 15915 (NWA 15915) tenham surgido em Mercúrio. Essa concepção se originou de comparações com o que cientistas acreditam, baseado nas evidências coletadas até o momento, ser a composição mercuriana.O que impede uma sonda de chegar ao planeta mais próximo do Sol é a intensa gravidade de nossa estrela. Naves que tentassem orbitar e pousar no planeta precisariam ter um trajeto calculado em detalhes, exigindo manobras gravitacionais em outros astros, para não serem puxadas pela força de atração solar. No entanto, através da observação, análise da composição pela luz e outras técnicas da astronomia moderna, pesquisadores constroem teorias de como Mércurio pode ser. Esses métodos permitem inferir características da superfície, a presença de certos minerais e até mesmo aspectos do interior do planeta, apesar da ausência de amostras diretas.Na pesquisa, os autores destacam que as rochas analisadas têm “conjuntos minerais não identificados anteriormente em meteoritos, consistindo em silicatos sem ferro e sulfetos incomuns”, uma composição esperada para a superfície mercuriana.Embora seja mais próximo da Terra, Mercúrio é mais difícil de ser alcançado do que Plutão. (Imagem: 24K-Production / Shutterstock)Segundo Gonçalves, isso ocorre porque a região próxima ao Sol é um ambiente redutor. Ao contrário da Terra, onde o ferro oxida e enferruja devido ao oxigênio, os arredores solares fazem o trabalho contrário: o hidrogênio liberado pela estrela transforma ferrugem novamente em metal. Junto a esse fenômeno, o calor emitido pelo Sol molda profundamente a química de Mercúrio. No decorrer do ano, a face do planeta que está voltada para a estrela esquenta muito, enquanto o lado oposto esfria. Durante esse aquecimento, elementos leves, como o sódio, evaporam e mudam os feldspatos – material do qual a superfície mercuriana é majoritariamente composta.Essa evaporação deixa um rastro ao redor do planeta, capaz de ser observado por pesquisadores com um filtro especial que permite apenas a passagem da luz emitida pelo sódio. “Provavelmente a composição dos feldspatos é empobrecida em sódio e enriquecida em elementos como cálcio, oxigênio e alumínio”, explicou o astrobiólogo.Em regiões profundas, esse fenômeno atua sobre os materiais olivina e piroxênio – encontrados nos meteoritos –, sendo enriquecidos em magnésio e empobrecidos em ferro, que permanece em sua forma metálica e vai para o núcleo. “O estudo demonstrou que os meteoritos têm essa química exótica, não encontrada aqui na Terra”, disse Gonçalves.Meteoritos Ksar Ghilane 022 e Northwest Africa 15915, supostamente originados em Mercúrio. (Imagem: Rider-Stokes et al.)Meteoritos podem não ser mercurianos, mas servirão para estudos essenciais“Segundo o trabalho que descreveu esse material, é pouco provável que sejam rochas de Mercúrio, mas são interessantes análogos, ou seja, têm algumas características que imaginamos que as rochas mercurianas apresentem”, explicou o pesquisador.As evidências contrárias a origem mercuriana do material estudado pelos cientistas estão na divergência entre a composição química e a formação de Mercúrio. Quando um astro muito grande se forma no espaço pela acreção de diversos corpos rochosos menores, ele esquenta e as rochas derretem, sendo separadas em fases por densidade. Por isso, o núcleo da Terra, da Lua e de outros astros maiores são compostos de ferro e níquel metálicos, materiais pesados e densos.Astros enormes, como luas e planetas, passam pelo processo de diferenciação: os elementos menos densos sobrem para a superfície, enquanto os mais densos afundam. Isso define a formação de seu núcleo e de suas camadas. (Imagem: Jcpag2012 / Wikimedia Commons)Leia mais:Cientistas do Brasil ajudam a desvendar origem de MercúrioComo escapar do Sistema Solar? A Ciência responde!Mercúrio contém exóticas geleiras de sal que podem abrigar vida“O artigo revela que os dois meteoritos são compostos por olivina e piroxênio, minerais pesados. Ou seja, eles não poderiam estar na superfície de Mercúrio, teriam de ser um basalto vindo mais de camadas mais fundas do planeta”, constatou Gonçalves.Embora as rochas possam não ter se originado no interior mercuriano, ainda serão uteis para pesquisas. “A presença de minerais exóticos indica que esse material se formou perto do Sol, por isso podemos estudá-lo como um análogo, algo semelhante ao que esperamos encontrar em Mercúrio”, explicou.Rochas podem guardar evidências da origem do Sistema SolarHá outras hipóteses para a origem dos meteoritos Ksar Ghilane 022 e Northwest Africa 15915 além de Mercúrio. Gonçalves destacou a possibilidade desse material ter vindo de corpos ancestrais, do tamanho de grandes meteoros ou até planetas, que orbitaram o Sol na infância do Sistema Solar.Segundo o pesquisador, eles teriam se fragmentado por choques constantes nesse caótico ambiente primordial. Alguns podem até ter formado acondritos – rochas presentes na composição de planetas formadas de magma resfriado. Esses pedaços estariam ao redor do Sol até hoje, sendo como “capsulas do tempo” para o passado de nosso sistema estelar.“Não é improvável que esses meteoritos tenham vindo desses protoplanetas. Embora hoje não tenhamos a comprovação total da existência deles, supomos que os impactos que os fragmentaram deixaram rastros visíveis em pequenos corpos que caem na Terra”, explicou Gonçalves.Essa hipótese é fortalecida pela datação dos meteoritos apresentada no estudo. O KG 022 foi estimado em 4,54 bilhões de anos e o NWA 15915, em 4,53 bilhões de anos. “Eles surgiram cerca de 100 milhões de anos após a formação do Sistema Solar, o que é relativamente rápido e desafia nossos atuais modelos”, disse o pesquisador.Representação artística da sonda BepiColombo, que deve chegar à órbita de Mercúrio em 2026. (Imagem: Divulgação/ESA)Agora, Gonçalves acredita que novas pesquisas são fundamentais para desvendar tanto a composição de Mercúrio quanto a verdadeira origem dos meteoritos. Junto aos autores do estudo, ele aguarda a missão BepiColombo, uma parceria entre a ESA e a Agência Japonesa de Exploração Aeroespacial (JAXA), que entrará na órbita de mercúrio. O lançamento está previsto para 2026. “Um dos objetivos desse artigo, ao propor um análogo, é justamente treinar futuras missões para o estudo de Mercúrio”, comentou. Os pesquisadores esperam que os dados coletados pela BepiColombo ajudem a esclarecer se os meteoritos têm, de fato, origem mercuriana. Se confirmada, a hipótese abrirá uma nova janela para entender não apenas Mercúrio, mas também a dinâmica que moldou os planetas rochosos nos primórdios do Sistema Solar. O post Meteoritos são de Mercúrio? Cientista explica as evidências apareceu primeiro em Olhar Digital.